Para a maioria das pessoas familiarizadas com a história, o significado da fotografia “Tank Man” é claro: o indivíduo bravo levantando-se contra um Estado repressivo.
Para Fang Zheng, um ativista estudantil chinês que agora está numa cadeira de rodas, a própria fotografia foi uma ferramenta de repressão. “Eu fui confrontado com a foto ‘Tank Man’ regularmente”, enquanto ele estava numa cama de hospital, logo após o massacre de 4 de junho de 1989, recuperando-se por ter tido suas pernas esmagadas por um tanque em alta velocidade na Avenida da Paz Eterna.
Fang Zheng foi um dos estudantes que protestaram contra a corrupção oficial e pediram maior democracia e liberdades. Centenas de milhares de jovens estudantes idealistas como ele encheram a Praça da Paz Celestial (Tiananmen), no coração de Pequim, desde abril. Provavelmente cerca de 3.000 deles, segundo estimativas mais recentes, foram violentamente mortos em 4 de junho, 25 anos atrás.
“Eles colocaram muita pressão em mim. Os oficiais me mostravam a foto e diziam: ‘Olha para isto. O tanque não o está esmagando. Se você foi esmagado, você deve ter sido violento.’”
Eram mentiras e a tentativa dos oficiais de penetrarem na cabeça de Fang o angustiava. Na manhã de 4 de junho, Fang tinha realmente se mobilizado para salvar uma estudante que desmaiou devido às armas químicas disparadas pelos soldados contra eles. A maioria dos disparos já havia se esgotado e ele e alguns outros já se encaminhavam para casa. Mas vendo a jovem caída, ele correu e empurrou-a para fora do caminho do tanque, que em seguida esmagou suas pernas.
“A primeira coisa que eles queriam que eu fizesse era esquecer a verdade, distorcer os fatos. Foi uma luta constante. Eles queriam que eu encobrisse o que ocorreu.”
Como um atleta, Fang foi negado participação nos Jogos Paraolímpicos na China, porque ele não mentiria sobre como perdeu as pernas. Ele foi colocado sob prisão domiciliar e isolado, e discriminado em seu local de trabalho e silenciado. Se ele simplesmente mentisse em nome do regime, ele poderia ter sido poupado de alguns problemas. “Isso durou por 20 anos, uma luta com o oficialismo sobre a natureza da verdade.”
Exilados da Praça da Paz Celestial se pronunciam
Fang Zheng falou sobre suas experiências na Universidade de Harvard, em abril, num painel organizado por outro sobrevivente do movimento de Tiananmen, embora ela nunca tenha ido a Pequim.
Rowena He era uma adolescente em Guangdong em 1989. Ela dirigiu sua bicicleta no meio da noite para se reunir com outras pessoas preocupadas com as notícias de Pequim, com o apoio extraordinário e comovente de todos os membros de sua família. Seu irmãozinho solenemente colocou cinco yuanes (US$ 80 centavos) no bolso de seu vestido e disse: “Beba um refrigerante se você ficar com sede.” Ninguém sabia quão grande poderiam ser os riscos do encontro.
Nove anos depois, ela deixou a China pelo Canadá, antes de se mudar para a Universidade de Harvard, onde leciona um curso sobre os protestos e a violenta repressão.
Seu novo livro, Tiananmen Exiles (“Exilados da Praça da Paz Celestial”, tradução livre), é um registro das experiências de algumas das figuras-chave do movimento estudantil, e ao mesmo tempo transmite sua própria história.
O núcleo do livro é formado por entrevistas com Wang Dan, Shen Tong e Yi Danxuan, todos líderes estudantis. Ela demonstra suas lutas pessoais com a violência política que reformulou suas vidas. O movimento de Tiananmen foi o evento formativo na vida de todas essas pessoas, como foi para a sra. He.
Os efeitos da repressão são observados quase de passagem, no caso de Cheng Renxing, um estudante de 25 anos da Universidade Popular da China, que foi morto a tiros ao tentar sair da praça em 4 de junho. Seu pai, um agricultor na província de Hubei, ficou destroçado emocionalmente e morreu seis anos depois.
“A mãe de Cheng tentou enforcar-se em casa”, escreve a sra. He, “mas foi salva pelo neto de 10 anos, que usou seu pequeno corpo para sustentar a avó por uma hora até que os adultos viessem resgatá-la.” Crianças nessa posição não seriam normalmente explicadas sobre a angústia e o sofrimento de uma família que perdeu entes queridos sob as balas do governo.
A sra. He explica precisamente, de fato, como o Partido Comunista procurou minar os laços familiares, tentando insinuar-se entre pais e filhos para reforçar o controle político e ideológico. Para os chineses, isso é percebido como uma ameaça; o Partido Comunista, durante seu governo, tentou controlar a mente das pessoas por meio do isolamento e neutralizar os impulsos sublimes, ou mesmo meramente humanos, em seus subordinados, substituindo-os com lealdade inquestionável e obediência servil ao regime.
Shen Tong explica como seu pai, um funcionário do governo municipal de Pequim, foi pressionado a espionar o próprio filho. No que era claramente uma troca dolorosa, o pai disse a sua mãe: “Eu sempre fiz o que o Partido Comunista me pediu, mas eu nunca trairei o meu filho.”
Amnésia forçada
O espírito humano, o anseio pela verdade e a resistência aos piores instintos do regime prevaleceram, apesar de todos os esforços do Partido Comunista Chinês. Outro livro, The People’s Republic of Amnesia (“República Popular da Amnésia”, tradução livre), escrito por Louisa Lim, uma ex-correspondente da NPR, é dedicado a explorar precisamente essa tentativa.
Lim tem viajado por toda a China, Taiwan e Hong Kong, recolhendo uma série de histórias esclarecedoras acerca das pessoas envolvidas no movimento de protesto e no massacre. Seu tema principal é a forma como o Partido apagou a história real e forçou a amnésia na população. Os mesmos métodos de pressão e controle social discutidos pela sra. He reaparecem aqui – é a moeda forte do Partido Comunista e há apenas algumas pessoas corajosas que estão dispostas a colocar os ideais acima das preocupações práticas e lutar contra o esquecimento.
Lim, no início do livro, faz um relato através dos olhos de Chen Guang, um dos soldados do interior da China, que esteve presente na supressão e limpeza na Praça da Paz Celestial. Seu batalhão foi sorrateiramente introduzido na capital em trajes civis. Eles deslocaram metralhadoras e munição até o Grande Salão do Povo antes de mudarem para trajes militares e dispararem contra os alunos esperançosos.
Chen portava apenas uma câmera, nunca uma arma, disse ele. Ele e seus camaradas “não sabia quantos milhares de trabalhadores, inclusivo dos ministérios do governo, haviam se juntado as manifestações”, escreve Lim. “Eles não sabiam que havia divisionismo no mais alto escalão do governo sobre como lidar com os protestos… E eles não sabiam, ainda, que eles próprios estavam prestes a se tornar peões num jogo político pelo poder supremo.”
Outros detalhes que Lim desenterra incluem a recusa de um alto comandante militar de participar na repressão e o medo profundo de que houvesse um motim inclusive entre as tropas.
Outras partes de seu livro, como a sra. He, lidam com os testemunhos de estudantes presentes na repressão e suas experiências posteriores. Há a figura extraordinária de Zhang Ming, por exemplo, um dos líderes estudantis. Após o massacre, Zhang começou um negócio. Mas depois de ser bem sucedido, centenas de milhões de dólares lhes foram roubados por agentes do governo que temiam que alguém como ele ficasse rico. Em seguida, ele foi jogado na prisão por sete anos. Agora, ele vive dos resquícios de seus ganhos, alimenta-se exclusivamente de leite, pois não consegue ingerir sólidos, e requer terapia constante para aliviar sua dor física, principalmente na cabeça.
O último capítulo do livro de Lim relata outro massacre ocorrido na China em 4 de junho, na cidade de Chengdu, no Sudoeste. Lá, como em Pequim, os soldados abriram fogo contra manifestantes desarmados que se reuniram no centro da cidade. A história desse massacre, e como ela é pouco conhecida até hoje, demonstra o sucesso da campanha do Partido Comunista Chinês para reprimir e apagar todos os vestígios de seus crimes. Mas, é claro, a estratégia só funciona até que falhe.