Burocracia e escolha pública

27/01/2014 16:11 Atualizado: 27/01/2014 21:52

No “Prefácio” (de 1944) da sua sintética e importante obra Burocracia [1], Ludwig von Mises nos dá conta da resposta que, em 1838, o ministro do Interior prussiano G.A.R. von Rochow teria dado a uma petição de um conjunto de moradores de uma cidade prussiana:

“Não é apropriado que um súbito aplique a medida do seu mísero intelecto aos atos do chefe de Estado e que se arrogue, com atrevida insolência, o direito de formular um juízo acerca da sua conveniência.”

Para Mises, este tipo de pretensão burocrática é característico da mentalidade absolutista que o liberalismo veio contestar. Para ilustrar a derrota das ideias liberais na Alemanha, o mesmo Mises cita uma afirmação, realizada cerca de meio século mais tarde pelo Reitor da Universidade Imperial de Estrasburgo, que caracterizou da seguinte forma o sistema de governo alemão vigente:

“Os nossos funcionários… nunca tolerarão que alguém lhes retire o poder das suas mãos, incluindo as maiorias parlamentares a quem sabemos tratar de maneira adequada. Nenhum tipo de governo é tão facilmente aceitável ou se aceita de tão bom grado como o dos funcionários públicos cultos e bem-educados. O Estado alemão é um Estado de supremacia do funcionário. Esperemos que assim continue.”

Embora nem sempre seja explicitada, a noção de infalibilidade (ou pelo menos incontestabilidade) do burocrata constitui um pressuposto implícito da generalidade das concepções totalitárias do Estado. Uma ideia que assenta numa injustificada visão dualista da pessoa humana: fora da esfera governamental e do aparelho de Estado, os indivíduos seriam limitados, imperfeitos e motivados pelos seus interesses próprios, mas os indivíduos dotados de poder burocrático seriam oniscientes e unicamente motivados pelo desejo de promover o bem comum. Daí a importância da perspectiva mais realista sobre o funcionamento das organizações burocráticas que a teoria da escolha pública veio introduzir. Ao aplicar consistentemente uma perspectiva antropologicamente realista tanto à ação no âmbito do mercado e da sociedade civil como à análise do processo político e do aparelho administrativo do estado, a teoria da escolha pública veio possibilitar uma compreensão e explicação do comportamento burocrático muito mais fiáveis do que as tradicionais visões idealizadas da burocracia. Neste domínio, ainda que os seus contributos continuem a ser injustamente desconhecidos e subapreciados, tanto Mises como Hayek devem ser reconhecidos como precursores da análise econômica da burocracia mais tarde desenvolvida por autores como Tullock e Niskanen.

O poder burocrático e a inquestionável “supremacia do funcionário” já não parecerão tão socialmente benevolentes e inofensivos se tivermos em conta que, sendo os burocratas seres humanos e não anjos, esse poder e essa supremacia podem facilmente ser utilizados em seu proveito próprio, com pesados custos sociais. Foi essa noção que levou a que os primeiros modelos de análise econômica da burocracia apresentassem o burocrata como um maximizador de variáveis, orçamento e poder.

No entanto, como bem salienta Pennington [2], a compreensão da natureza e extensão do poder burocrático, assim como da forma como esse poder é exercido, exige mais do que uma concepção meramente maximizadora. O estudo das burocracias não deve limitar-se a uma abordagem simplista da escolha pública excessivamente centrada na escolha racional e no interesse próprio. O funcionamento das organizações burocráticas e as possibilidades de levar a cabo reformas institucionais bem sucedidas dependem tanto dos incentivos que influenciam as escolhas individuais, como do enquadramento ético, cultural e ideológico no âmbito do qual essas escolhas se concretizam.

As abordagens assentes na simples escolha racional subvalorizam frequentemente a importância das ideias e dos valores no comportamento individual e no funcionamento das organizações. Ora, sem considerar esses fatores, não é possível ter uma compreensão plena quer das diferenças entre organizações burocráticas de diferentes países e regiões, quer entre diferentes organizações burocráticas inseridas num mesmo contexto territorial e político. Os padrões éticos, as ideologias e as atitudes culturais prevalecentes no interior e no exterior das organizações influenciam de forma decisiva a maneira como os incentivos e as regras existentes são interpretadas, executadas e avaliadas. Estas condições são também elementos centrais na definição do estatuto e poderes efetivos dos burocratas, bem como da sua influência real sobre as políticas públicas. Tal como acontece em outras áreas, nas burocracias os incentivos contam muito, mas as ideias e os valores também.

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Notas:

[1] MISES, Ludwig von. Bureaucracy. New Haven: Yale University Press, 1944.

[2] PENNINGTON, Mark. “The Bureaucracy” em BARA, Judith & PENNINGTON, Mark (eds.). Comparative Politics. Londres: SAGE Publications, 2009.

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André Azevedo Alves é PhD em Ciência Política pela London School of Economics, autor e coautor de vários livros, entre os quais “Ordem, liberdade e Estado”, “O que é a escolha pública?” e “The Salamanca School”. É coautor do blog português O Insurgente

Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ordem Livre