No final de 2001, em meio à crise econômica e política que vivenciou o país, a conversibilidade do peso argentino ao dólar na taxa de 1:1 foi revogada. Além disso, o presidente interino Adolfo Rodriguez Saá anuncia o calote da dívida externa (quase 100 bilhões de dólares). O país vivenciou um confisco bancário (corralito) e a população foi às ruas.
Em 2005, o então presidente Nestor Kirchner optou por entrar em acordo com os credores, oferecendo um desconto de 70% e um prazo 30 anos para pagar as parcelas da dívida. Um péssimo negócio para os credores, mas ainda assim melhor do que perder tudo.
Alguns credores (10%), no entanto, optaram por enfrentar o governo argentino e utilizaram arbitragem internacional para pressionar o governo argentino a pagar totalmente. Esses credores são fundos de investimento especializados em recuperação de crédito podre, e são pejorativamente chamados de fundos abutres – se alimentam da carniça do mercado financeiro.
O desentendimento do estado argentino com o mercado levou Axel Kicilof, ministro da fazenda, a declarar calote momentâneo em todas as suas dívidas. O estado argentino voltou atrás e depositou um pagamento de 1 bilhão de dólares no último dia 26, mas tudo é possível daqui para frente.
A título de informação: o ministro Kicilof se gaba de ter “interpretado Keynes com ferramentas marxistas”. Assim podemos entender porque as coisas na Argentina estão degringolando rápido…
Por que ocorreu?
O próximo gráfico mostra a evolução da dívida argentina após 1995, muito embora devemos ressaltar que a mesma saltou de 61 bilhões de dólares para 91 bilhões de 1991 a 1996 e seguiu crescendo.
Essa dívida contraída nos anos 90 estava no escopo dos programas de ajuste que almejavam consertar a hiperinflação semeada no período de peronismo e depois ditadura.
Muito embora o Plano Real tenha sido diferente do plano de ajuste argentino em aspectos importantes – nós tínhamos câmbio fixo, porém não havia currency board – tanto o Brasil como a Argentina optaram por um sistema de indexação cambial para estabilizar suas moedas.
Na indexação via câmbio fixo o governo se compromete a comprar e vender reservas internacionais a um preço fixo. Num currency board ideal a variação da oferta monetária local deve apenas acompanhar a variação das reservas internacionais – só se cria moeda local se entrar moeda estrangeira.
Leandro Roque numa excelente matéria abordou o tema, mostrando como o fraudulento regime bancário de reservas fracionárias, no qual os bancos comerciais criam moeda, simplesmente inviabiliza o experimento do currency board sem que haja crises.
Os bancos comerciais argentinos expandiam a oferta de pesos sem que houvesse o lastro em dólares proposto pelo plano de ajuste. Na prática, apenas o banco central argentino cumpria a restrição.
Com cada vez mais pesos sendo criados pelo sistema de reservas fracionárias e dada a garantia de conversibilidade 1:1 do banco central, temos uma bomba relógio: o mercado começará a trocar pesos por dólares, uma vez que se oferece um preço acima do preço que o mercado pagaria pelos pesos.
Outra consequência é uma saída de dólares via déficit comercial – afinal de contas, o experimento barateou artificialmente o dólar e tornou as importações artificialmente baratas:
Para manter uma taxa de câmbio artificialmente valorizada, entra-se numa bola de neve – é necessário pegar dólares emprestados para fazer frente a uma demanda crescente por conversão.
Como governos não cortam gastos – ainda mais em se tratando de Brasil e Argentina – aumentos da carga tributaria para pagar juros são o resultado final. Em resumo, a estabilização das moedas emitida pelos governos latino-americanos requereu dólares, leia-se, dívida externa e juros para serem pagos com mais impostos.
No caso do Brasil, que não teve currency board, a situação era ainda pior, pois o próprio banco central brasileiro podia emitir moeda e tinha que sustentar a paridade 1:1. Junte a isso a expansão monetária dos bancos comerciais e verá o câmbio fixo cair por terra, como foi o caso.
As economias da América Latina tiveram uma chance de ouro nos anos 90 para eliminar um dos principais pilares do poder estatal – o poder de emitir moeda de curso legal. Bastaria deixar as moedas hiperinflacionárias morrerem conferindo liberdade monetária para o mercado utilizar a moeda que lhe conviesse. Apenas o Equador escolheu abrir mão das impressoras de moeda e utilizar o dólar americano.
Adaptando o que disse Leandro Roque em seu artigo sobre o Plano Real, os planos de ajuste latino americanos dos anos 90 foram pirotecnias desnecessárias para salvaguardar algo que sequer deveria existir.
A ética da dívida pública
Governos se financiam de três formas, a saber: impostos, inflação (aumento da oferta monetária) e dívida. Dívida se paga, se rola, ou se dá calote. E para pagar, o governo necessariamente terá que cobrar impostos ou praticar inflação.
Para os governos, especialmente os democráticos, com horizonte de planejamento na casa entre 4 a 8 anos, a dívida é a forma preferida de se financiar (depois da inflação, claro). Pode-se aproveitar o presente e mandar a conta para os próximos infelizes que terão que se virar para pagar.
Como poucas pessoas entendem de economia e sistema financeiro, há ainda a facilidade de se aprovar politicamente a emissão de dívida, quando comparado a um aumento de impostos. Há ainda o plus retórico de colocar a culpa nos “agiotas estrangeiros” quando as coisas vão mal…
Já aquele que empresta a um governo sabe dos riscos que corre. Sabe que está lidando com uma entidade que pode legislar em causa própria e que não fará bom uso dos recursos que está captando. É um tipo de jogo onde não há coitadinhos e ingênuos.
Sendo o estado uma entidade pautada no uso da violência e que se financia de forma violenta e fraudulenta (impostos e inflação), a moratória é eticamente superior ao pagamento de juros em respeito ao pagador de impostos, que pode agora ter seu fardo aliviado [1].
Além disso, uma moratória tem o efeito positivo de eliminar o governo em questão do mercado de dívida por um bom tempo, o que impede que recursos sejam destinados ao mesmo para serem desperdiçados em atividades sem fundamento econômico.
Quanto àqueles que acreditam que o estado deva controlar recursos e prestar uma miríade de serviços, há apenas duas opções: defender déficit zero e aumento de impostos ou inflação para financiar a máquina; ou depender do humor daqueles que estão dispostos a negociar com malandros que podem vir a praticar a pindureta.
Quando Belluzzo concorda com os austro-libertários
Em artigo recente para o Valor Econômico, Luiz Gonzaga Belluzzo acabou por concordar com os economistas Austríacos – mesmo que por vias tortas.
Amparado em Focault, o mesmo diz que “o neoliberalismo é uma ‘prática de governo’ na sociedade contemporânea. O credo neoliberal não pretende suprimir a ação do Estado, mas, sim, ‘introduzir a regulação do mercado como princípio regulador da sociedade'”.
Belluzzo/Focault está certo. As reformas dos anos 90, chamadas de neoliberais, definitivamente não coadunam com os princípios do liberalismo clássico nem do moderno libertarianismo, que não versa sobre agências reguladoras, planos econômicos, bancos centrais nem subserviência à corrupta elite financeira.
De fato, a bela biografia de Mises, escrita por Jorg Guido Hulssmann, mostra como a ideologia neoliberal foi uma espécie de recuo da defesa do liberalismo clássico para uma defesa de um intervencionismo moderado. Mostra, principalmente, toda a batalha que Mises travou ao longo de sua carreira contra esse recuo.
Caso houvesse uma nova moratória argentina, tratar-se-ia de uma boa punição a todos: aos governos irresponsáveis que sofrerão na mão do mercado financeiro da próxima vez que quiserem ter recursos em mãos; e aos financistas irresponsáveis que emprestaram dinheiro a esta entidade notoriamente pouco confiável.
E também àquela parcela dos cidadãos que defende o acúmulo de dívida pública – acreditando que conseguirão lucrar sua parte.
[1] Não queremos discutir aqui questões técnicas (que são importantes), como, por exemplo, o caos temporário no sistema financeiro que a moratória de uma dívida pública gera. Apenas como exemplo, as operações financeiras de curto prazo mais comuns, as operações compromissadas (repo), utilizam títulos públicos como garantia. Até que o crédito passe a ser destinado ao setor privado e que o mercado substitua o lastro básico das operações, haverá turbulência.
Rafael Hotz Arroyo é economista formado pela Unicamp e defensor do livre mercado. Trabalha no mercado financeiro, no segmento de securitização
Editado por Epoch Times
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