Lamentavelmente, existem países onde a democracia não consegue florescer, até mesmo quando movimentos populares tentam implantá-la. Ingredientes socioculturais tornam certos povos mais receptivos a autocracias e confortáveis sob esse tipo de comando. Com frequência, apenas uma minoria da população reivindica instituições democráticas. Egito e Rússia são exemplos emblemáticos.
Em sua milenar história, o Egito jamais havia saboreado o gostinho da democracia até a queda da ditadura Mubarak. As eleições que, em seguida, levaram a Irmandade Muçulmana ao poder não implantaram instituições estáveis, dada a tentativa dos novos governantes de impor um regime islâmico. Apoiado por majoritária parcela da sociedade, o golpe militar que derrubou o presidente Morsi culminou agora com a eleição do general Sissi à presidência, desfrutando de poderes de Cesar. Poucos são os egípcios que lamentam o fracasso das aspirações democráticas.
Quando a União Soviética desabou, a eleição de Yeltsin à presidência da Rússia parecia o limiar de uma inédita era de liberdade. Em pouco tempo essa ilusão evaporou-se e, após a saída de Yeltsin, o povo submeteu-se a um regime repressivo intolerante à diversidade. Lá, cidadãos são condenados por supostos “crimes” que em sociedades democráticas não constituem atos criminosos. Constatou-se assim a dificuldade de superar a herança totalitária czarista e comunista. Em impressionante profecia, documento da Assembleia Parlamentar do Conselho Europeu afirmou, em 1996: “Os perigos de fracasso do processo de transição (na Rússia) são múltiplos. Na melhor das hipóteses, oligarquia vai reinar em vez de democracia, corrupção em vez dos preceitos da lei, e crime organizado em vez de direitos humanos”.
O caso da América Latina difere dos antes citados. Sua nova modalidade de pendor pelo autoritarismo começou a manifestar-se em 1999, na Venezuela de Hugo Chávez, alastrando-se ao Equador, Bolívia e Nicarágua. Seus presidentes foram escolhidos através de eleições mas, no entanto, mediante procedimentos ilegítimos assumiram poderes incompatíveis com a democracia. Esses governantes coagem qualquer atitude opositora, empenham-se em perpetuar-se no poder e usam os instrumentos constitucionais sem inibições éticas. Hoje existem sinais de debilitamento no ímpeto continuísta de alguns presidentes, mas ainda é cedo para prever os resultados.
Esse gênero de liderança resultou do decepcionante desempenho do establishment político que sucedeu o antigo ciclo latino-americano de ditaduras militares, cujo encerramento iniciou-se nos anos 80. A desilusão ante as figuras públicas atuantes nessa época redundou no declínio da fidelidade do povo à liberdade conquistada. Abriu-se então um espaço receptivo a lideranças populistas, descomprometidas com a integridade democrática. Por outro lado, recorrendo a um discurso pretensamente favorável às classes de menor renda, esses governantes nada realizam de substancial em termos de amenizar os contrastes sociais.
O Brasil encontra-se distanciado dessa onda de caudilhismo, embora seu governo se solidarize com os líderes “bolivarianos” e manipule o conceito de equidade social. As instituições democráticas brasileiras desfrutam de uma solidez rara na história do país. Porém, tendo em vista o apego do PT ao poder, o ainda sobrevivente saudosismo ao regime militar e a eventual perda do apetite popular por democracia devido aos indigestos políticos em cena, torna-se prudente ficar atento.
Marcello Averburg é economista e por três décadas lecionou economia na Universidade Federal Fluminense (UFF). Trabalhou para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) durante cerca de vinte anos, onde foi chefe dos depatamentos de Planejamento, Avaliação de Programas e de Indústria Naval, além de assessorar a presidência.