O governo brasileiro está, objetivamente, transformando o país em um dos agentes da volta da guerra fria no mundo.
Não aprovo a incursão militar de Israel no território de Gaza. Condeno qualquer ação guerreira. E condeno as estruturas desenhadas para a guerra (seja para a guerra quente, para a guerra fria ou para perverter a política como arte da guerra) que são os Estados. Explico em uma nota, ao final, por que penso isso (*). Como sou contra esse tronco de programas verticalizadores da rede social chamado Estado, sou contra Estados em geral, inclusive o Estado de Israel e o proto-Estado do Hamas.
Mas eu sou uma pessoa, não um Estado. Considero que ainda que um Estado seja uma estrutura guerreira, os democratas – mesmo quando dirigindo o Estado – devem condenar, sobretudo, a guerra quente, seja ela qual for, venha de onde vier. Vejo, porém, que os autocratas, ao contrário, condenam apenas as guerras travadas por seus inimigos. Ora, isso significa fazer guerra fria (contra esses inimigos) e não condenar a guerra. É o que o governo brasileiro está fazendo. Tal está acontecendo porque, embora o Brasil (graças à complexidade de sua sociedade e à solidez de suas instituições) não seja uma ditadura, os que dirigem o governo brasileiro são aliados de ditaduras (provavelmente porque não estão convertidos à democracia e, também por esse motivo, se comportam, objetivamente, como agentes de ditaduras).
Temos agora mais um exemplo. A diplomacia ideológica do atual governo brasileiro emitiu na quarta-feira (23) uma nota lamentável sobre o conflito israelo-palestino. É claro que a invasão militar da Faixa de Gaza deve ser condenada. É claro que as perdas humanas – sobretudo de civis – devem ser condenadas. Mas um país democrático não pode condenar apenas um dos lados, sem explicar os motivos que levaram à invasão e sem considerar que há uma guerra promovida contra Israel pela organização terrorista Hamas, que usa a população civil da Palestina (inclusive crianças) como escudo. Não basta dizer numa frase que “condena o lançamento de foguetes e morteiros de Gaza contra Israel”, escondendo a autoria dos atentados, como se milhares de foguetes tivessem sido lançados por algum grupo de malucos, isolada ou fortuitamente. Gaza não lança foguetes e morteiros. Quem é Gaza? Gaza é uma identidade abstrata. Quem, em Gaza, lança foguetes e morteiros contra a população civil de Israel?
Quem lê a nota do governo brasileiro fica achando que se trata de um massacre do exército de Israel contra um simples povo desarmado. Haverá (e já há) de fato um massacre (porque Israel é muito superior ao Hamas em força militar, logística e de inteligência). Mas há uma guerra entre dois contingentes armados: um Estado (Israel) contra um proto-Estado (o Hamas), que mesmo sendo muito inferior militarmente comete atentados terroristas, lança foguetes e morteiros (não contra objetivos militares e sim a esmo, contra a população civil – e isso caracteriza ação de terror), cava túneis para infiltrar terroristas (um dos objetivos da incursão terrestre é destruir esses túneis) no território ocupado por Israel.
Leiam a nota:
“O Governo brasileiro tem acompanhado com profunda preocupação a escalada de violência entre Israel e Palestina e expressa sua solidariedade com os feridos e com as famílias das vítimas na Palestina e em Israel.
O Governo brasileiro condena veementemente os bombardeios israelenses a Gaza, com uso desproporcional da força, que resultaram em mais de 230 palestinos mortos, muitos deles civis desarmados e crianças. Condena, igualmente, o lançamento de foguetes e morteiros de Gaza contra Israel.
O Governo brasileiro rechaça a atual incursão terrestre israelense em Gaza, iniciada na noite de 17/7, que representa grave retrocesso nos esforços de paz. Tal ofensiva poderá ter sérias repercussões para o aumento da instabilidade no Oriente Médio e exacerbar a já dramática situação humanitária naquele Território Palestino ocupado. Instamos as forças israelenses a respeitarem estritamente suas obrigações ante o Direito Internacional Humanitário. Ademais, consideramos necessário que Israel ponha fim prontamente ao bloqueio a Gaza.
O Governo brasileiro conclama ambas as partes a estabelecerem um cessar-fogo duradouro e aderirem imediatamente aos esforços empreendidos pelo Governo do Egito e pelas Nações Unidas nesse sentido. Reitera que a solução de dois Estados, Israel e Palestina, requer que as partes respeitem suas obrigações nos termos do direito internacional e retomem sem demora as negociações de paz para encerrar o conflito.
Em vista da escalada de tensões verificada nas últimas semanas entre as partes israelense e palestina, o Governo brasileiro acionou seus postos na região para viabilizar, de forma expedita, a retirada de cidadãos brasileiros residentes na Faixa de Gaza e seus familiares próximos. Em virtude dessas ações preventivas, 12 portadores de passaporte brasileiro foram evacuados até a manhã de hoje”.
É evidente que se trata de uma tomada de posição, não a favor da paz e sim – objetivamente – a favor do proto-Estado terrorista da organização chamada Hamas. Não houve condenação significativa dos 2 mil foguetes lançados pelo Hamas contra a população civil do território de Israel. Não houve sequer menção ao fato de que o Hamas esconde mísseis em mesquitas, hospitais e escolas, usando a população civil (sobretudo crianças) como escudo.
Desde que o PT aparelhou o Itamaraty e ideologizou a política externa brasileira para alinhá-la à guerra fria contra os USA, apoiando ditaduras mundo afora e recusando-se a condenar gravíssimas violações aos direitos humanos cometidas por autocracias, insanidades como essa vêm caracterizando o comportamento governamental. Vejamos (apenas) oito exemplos:
1 – O governo brasileiro não condenou os atentados aos direitos humanos cometidos pela neoditadura venezuelana (que produziu mais de 500 prisões de estudantes em cárceres militares, torturou dezenas de pessoas inocentes e foi responsável por 40 mortes). Pelo contrário, obstruiu (na OEA) todas as iniciativas nesse sentido e conspirou para que as notícias da rebelião popular que começou em 12 de fevereiro de 2014, sequer fossem divulgadas pelos meios de comunicação do Brasil e, como se não bastasse, acionou uma rede suja de blogs (financiados, em grande parte, por estatais) para desacreditar as fotos e os relatos que chegavam (via Twitter e Facebook) da repressão de Maduro (operada com a assessoria de cubanos) em praticamente todas as cidades venezuelanas.
2 – O governo brasileiro se aliou à ditadura cubana e, mais do que isso, continua financiando e agindo mancomunadamente com os irmãos Castro no seu plano de colonizar a Venezuela e a Nicarágua e expandir sua influência junto a outros países centro e sul americanos (El Salvador, Equador, Bolívia, Argentina e Uruguai, além de tentativas na Colômbia, no Paraguai e no Peru).
3 – O governo brasileiro não condenou o envio de tropas da Venezuela para sufocar revoltas populares na Bolívia, com o agravante de que os aviões tiveram permissão para atravessar o espaço aéreo brasileiro (o que é vedado pela Constituição Federal).
4 – O governo brasileiro se absteve de uma resolução condenando o governo do ditador Omar al-Bashir, do Sudão, pelo massacre de pelos menos 500 mil pessoas em Darfur.
5 – O governo brasileiro fez corpo mole para condenar o genocida Bashar Al Assad, da Síria (responsável, até agora, por 150 mil mortes – inclusive com o uso de armas químicas -, 4 milhões de desalojados e 2 milhões de refugiados, número esses que não se viam desde o genocídio de 1994 em Ruanda).
6 – O governo brasileiro jamais fez qualquer reparo significativo à política expansionista do neoditador Putin, que recentemente anexou a Crimeia, arma, treina e comanda milícias no leste do Ucrânia, já havia feito uma intervenção militar na Georgia para dominar a Ossétia do Sul e massacrado os povos da Chechênia e do Daguestão.
7 – O governo brasileiro participou de (e mais do que isso, conduziu) uma conspirata com o protoditador Chávez para expulsar o governo constitucional do Paraguai do Mercosul, colocando em seu lugar a Venezuela chavista em claro desrespeito à cláusula democrático do bloco.
8 – O governo brasileiro praticamente entregou a embaixada brasileira em Honduras para o proto-ditador Zelaya montar um bunker contra o governo constitucional daquele país (num golpe frustrado).
São muitos episódios. Um atrás do outro. Não pode ser coincidência. Não pode ser explicado como um erro eventual ou como resultado de uma série infeliz de equívocos. Não. É uma política. O governo brasileiro está, objetivamente, transformando o país em um dos articuladores da volta da guerra fria. Esse é um crime contra a democracia que não pode ser ignorado e os responsáveis por isso, mais cedo ou mais tarde, vão ser cobrados gravemente por tais malfeitos.
NOTA
(*) Estados são estruturas guerreiras. Isto é assim desde que apareceu a primeira forma de Estado, o Estado-Templo na antiga Mesopotâmia (provavelmente como uma primeira monarquia, em Kish, na Suméria). Foi assim nos proto-Estados das hordas de predadores que rumaram para o Ocidente a partir das margens setentrionais do Mar Cáspio. Foi assim nas cidades-Estados monárquicas da antiguidade, nos Estados feudais antigos e nos Estados teocráticos associados ao chamado modo de produção asiático. Foi assim nos Estados feudais europeus medievais e nos Estados do feudalismo oriental mais recente (como no Japão). Foi assim nos Estados principescos (de que tratou Maquiavel) e nos Estados reais. E foi assim na forma atual Estado-nação que surgiu com a paz de Westfália no século 17. Quem mitigou a fome pantagruélica por terra ou “espaço vital” (o expansionismo territorial) e o destrutivo impulso guerreiro do Leviatã foi a democracia reinventada pelos modernos, dando origem ao Estado democrático de direito. Ainda assim, mesmo o Estado democrático de direito continuou eivado de quistos autocráticos, continuou mantendo uma estrutura hierárquica regida por modos de regulação, em grande parte, autocráticos (a despeito da democracia). A democracia dos modernos surgiu para proteger os cidadãos contra o seu próprio Estado, já que sua mão pesada, desenhada para a guerra contra inimigos externos, não conseguia evitar que esse tronco gerador de programas verticalizadores da rede social acabasse construindo inimigos entre os de seu próprio povo (quer dizer, da população arrebanhada dentro de suas fronteiras, estabelecidas estas últimas, via de regra, manu militari). Não conseguiu democratizar suficientemente o Estado (na medida em que também não conseguiu horizontalizar boa parte de suas instituições), mas conteve alguns de seus efeitos mais perigosos. Deve-se porém reconhecer que, apesar de todas as limitações da democracia dos modernos (a democracia representativa, formal e política realmente existente), ela trouxe, entre outras, uma vantagem notável (e inegável): Estados democráticos de direito não costumam guerrear entre si. Quem duvidar desta afirmação, deve dar exemplos de guerras (quentes) entre dois Estados democráticos de direito (sobretudo entre aqueles que experimentam a democracia representativa em seu sentido pleno, que dizer, respeitando os critérios da liberdade, da eletividade, da publicidade ou transparência, da rotatividade ou alternância, da institucionalidade e da legalidade e, como consequência de todos esses, da legitimidade democrática). Quem procurar, dificilmente encontrará. Encontrará, isto sim, guerras entre Estados democráticos de direito e ditaduras (como a guerra das Malvinas). E encontrará, é claro, guerras entre dois ou mais Estados autocráticos.
Augusto de Franco é escritor, palestrante e consultor
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