O bicho-papão NSA e os ardis dos autocratas de esquerda para legitimar ditaduras

28/12/2014 13:59 Atualizado: 28/12/2014 13:59

A NSA está vigiando indivíduos? Claro que está! Assim como também estão as câmeras digitais em Londres. Mas isso não significa que Estados Unidos e Inglaterra aproximam-se perigosamente do totalitarismo e que serão em breve sociedades controladas por algum Big Brother. Qualquer Estado, hoje, é capaz de rastrear indivíduos que usam cartões de crédito, pedem taxi por aplicativos celulares e usam a internet. A questão é saber se essa possibilidade tecnológica é determinante diante do modo de regulação predominante.

Os autocratas que se dizem “de esquerda” agora deram para se preocupar com a privacidade do indivíduo. Digo agora porque isso não é característico da cultura de esquerda, marxista-leninista e marxista-gramcista. Tal preocupação nunca tirou o sono dos sequazes dos irmãos Castro, em Cuba (onde os CDRs – organismos de vigilância sócio-política do partido-Estado – instalados nos bairros, sabem até com quem você trepou). Nem mesmo tira o sono dos mais recentes bolivarianos (o governo chavista de Maduro, na Venezuela, por exemplo, clonando e atualizando aquela caixinha de denúncias do Fahrenheit 451, até disponibilizou um aplicativo para celular que lhe permite vigiar – e denunciar – os semelhantes).

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Então agora, na esteira das denúncias de Snowden e da perseguição a Assange, todos esses “revolucionários” ficaram de repente muito preocupados com a privacidade do indivíduo. Como autocratas, de todos os matizes, precisam desesperadamente de um inimigo – sejam os negros, os judeus, o capitalismo internacional, o neoliberalismo ou o imperialismo norte-americano – o inimigo da hora é a NSA: National Security Agency, a agência de segurança dos Estados Unidos, criada em 4 de novembro de 1952 com funções relacionadas a Inteligência de sinais (SIGINT), incluindo interceptação e criptoanálise.

A NSA está vigiando indivíduos? Claro que está! Assim como também estão as câmeras digitais em Londres. Mas isso não significa que Estados Unidos e Inglaterra aproximam-se perigosamente do totalitarismo e que serão em breve sociedades controladas por algum Big Brother. Qualquer Estado, hoje, é capaz de rastrear indivíduos que usam cartões de crédito, pedem taxi por aplicativos celulares e usam a internet. A questão é saber se essa possibilidade tecnológica é determinante diante do modo de regulação predominante. E não é a tecnologia que dita se viveremos em regimes de controle e sim a política. Os Estados Unidos e a Coréia do Sul, com toda tecnologia mais avançada disponível, controlam menos seus cidadãos do que o Sudão e a Coreia do Norte (super-atrasados tecnologicamente). Pior! Singapura controla mais seus cidadãos do que qualquer outro país, não porque tenha mais tecnologia de controle e um Estado mais invasivo da privacidade das pessoas e sim porque controla socialmente: há um programa que roda na rede social independentemente das pulsões de controle dos governantes.

Então, quando autocratas de esquerda falam da privacidade do indivíduo é para desviar a atenção da privatização partidária da sociedade (o objetivo do tal processo de conquista de hegemonia). Eles agitam a bandeira da privacidade instrumentalmente e por motivo torpe: para legitimar ditaduras. Se você critica que Rafael Correa, no Equador (como todo bom bolivariano), prorrogou indefinidamente seu mandato falsificando a rotatividade democrática e que, em seguida, está controlando a mídia e a internet (inclusive fazendo sumir conteúdos publicados por dissidentes nas mídias sociais, como denunciou José Miguel Vivanco do Human Rights Watch na semana passada), eles retrucam imediatamente que a NSA quer nos controlar a todos. O raciocínio é simplório e ridículo e pode ser resumido assim: como o imperialismo norte-americano (a serviço do capitalismo global) está nos controlando, invadindo nossa privacidade, justificam-se medidas que violem a liberdade dos meios de comunicação (e, a rigor, todas as medidas que violem os critérios democráticos: além da liberdade, a transparência ou publicidade, a eletividade, a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade) tomadas por países que estão em guerra contra o grande satã do Norte.

É a mesma justificativa para a falta de liberdade em Cuba nos últimos 60 anos: há um bloqueio dos Estados Unidos e a valorosa ilha do Caribe está em guerra com o imperialismo, logo… Em outras palavras: não devemos nos preocupar com nossos demônios porque há um demônio maior a ser combatido. Guerra é guerra. Nossos pequenos demônios seriam nossas armas para combater o grande demônio. Ora, isso justifica qualquer ditadura, desde que em guerra (retórica ou efetiva, quente ou fria, praticada como confronto físico violento ou pela política pervertida como arte da guerra) contra o grande demônio. No limite até a Coréia do Norte será justificada (como faz no Brasil o PCdoB, da aliança governista comandada pelo PT). Além do limite, podemos usar o mesmíssimo argumento para justificar a teocracia iraniana dos Aiatolás ou o jihadismo islâmico do Hamas (em guerra contra o imperalismo de Israel, representante na região do imperialismo norte-americano) ou, até, o Estado Islâmico (ISIS ou EIL).

A questão é que tais alegações são rigorosamente incorretas do ponto de vista da democracia. O governo norte-americano pode invadir a privacidade de cidadãos, mas nunca conseguirá – enquanto for uma democracia formal – estabelecer um controle sobre todos os cidadãos como modo de administração política do Estado. Qualquer governo que tentasse fazer isso cairia em poucas horas. O fato dos USA se comportarem no plano internacional como uma força de guerra (de vez que a política internacional ainda se baseia no equilíbrio competitivo e não foi violada pela ideia e pela prática da democracia), não significa que seu governo se comporte assim internamente.

A democracia dos modernos, como sabemos, só vale para o plano interno, dos povos que vivem dentro das fronteiras dos Estados nacionais. É uma fórmula válida para países, mas não para relações entre países. Até os atenienses do século de Péricles, que inventaram pela primeira vez a democracia, comportavam-se de modo antidemocrático quando se relacionavam com outros povos e reconheciam isso, como observou Hannah Arendt (c. 1950), quando eles mesmos declaravam que se comportavam de modo a-político nas suas interações com os povos da Ática, com os espartanos, com os persas, com os macedônios. Mas isso não significa que tudo seja a mesma coisa (que ditadura seja igual à democracia ou que ditaduras que lutam contra democracias que se comportam de modo não democrático nas suas relações internacionais estejam absolvidas). Se um país se arma para atacar ou se defender de outros países ou move campanhas militares (quentes ou frias, incluindo a espionagem que é própria da inteligência militar desde Sun Tzu) contra outros países, isso não significa que ele não possa ser democrático e nem que possamos ser antidemocráticos se estamos em guerra contra tal país. Do contrário nenhum país que possui força militar e que faz espionagem (e todos os países fazem) seria democrático. Do contrário seria a mesma coisa viver em Pyongyang ou em Oslo (e, como sabemos, não é a mesma coisa: aos que ainda duvidam recomenda-se passar um ano em cada uma dessas capitais para verificar in locu e… na pele, as diferenças).

O controle feito pela própria sociedade hegemonizada por um partido que se fundiu ao Estado é o que caracteriza a autocracia. É isto que os autocratas atuais, que usam a democracia contra a democracia, querem esconder (com esse papo furado de defesa da privacidade). Todos devemos defender a privacidade. Mas o perigo da autocracia é muito, muito diferente da invasão de privacidade de indivíduos feita por um país em um país estrangeiro ou sobre os cidadãos do seu próprio país. A autocracia configura um ambiente em que o controle roda como um programa. No limite você será denunciado pelo seu vizinho (como na Cuba castrista) ou pelo seu próprio filho (como na distopia do filme Equilibrium) e não por uma NSA.

Não, a atuação da NSA (e de todas as suas congêneres que fazem a mesmíssima coisa com menos recursos tecnológicos, sofisticação e abrangência) é condenável, mas o bicho-papão NSA não pode servir de motivo – como querem os autocratas que se dizem “de esquerda” – para legitimar ditaduras.