Barack Obama, darwinismo social e sobrevivência do mais apto – Parte 1

03/04/2014 13:14 Atualizado: 03/04/2014 13:14

Em 3 de abril de 2012, o presidente Obama chamou a proposta de orçamento do deputado Paul Ryan de “darwinismo social disfarçado”. Escrevendo no Huffington Post, Jennifer C. Kerr de forma irônica perguntou: “Mas o que exatamente o presidente quis dizer? E o background histórico negativo da teoria será ignorado pela maioria das pessoas?”

A palavra-chave na primeira pergunta de Kerr é “exatamente”. Essa questão pode facilmente ser respondida: Obama não quis dizer exatamente nada. A expressão “darwinismo social”, quando aplicada à economia de livre mercado e ao governo limitado, não tem significado preciso, e nunca teve. E o termo também nunca foi adotado por defensores do libertarianismo laissez-faire. Pelo contrário, “darwinismo social”, um termo que apareceu pela primeira vez por volta de 1880, foi inventado pelos inimigos do capitalismo de livre mercado para difamar seus adversários. E foi exatamente dessa forma que o presidente Obama usou o termo.

A segunda questão de Kerr – “E o background histórico negativo da teoria será ignorado pela maioria das pessoas?” – é curiosa, especialmente porque ela pede a opinião questionável de um “expert em linguagem” no sentido que “darwinismo social” seja “um termo arriscado para se usar como munição política”.

Aqui devemos marcar um ponto para o presidente Obama e demagogos em geral. Não importa se as pessoas entendem ou não o que Obama quis dizer por “darwinismo social”. Tudo que importa é que “darwinismo social” invoca conotações desagradáveis de “lei da selva” – uma sociedade sem compaixão, em que os pobres sem ajuda são sacrificados em benefício dos ricos avarentos.

Num discurso dado em Janeiro de 2012, o presidente Obama declarou: “Não somos um país que foi construído sob a ideia da sobrevivência do mais apto”. Aqui ao menos temos uma expressão que foi de fato usada por defensores do livre mercado – mais notavelmente pelo filósofo inglês Hebert Spencer (1820 – 1903), que criou o termo; e seu contemporâneo americano, William Graham Sumner (1840 – 1910), o primeiro professor de Sociologia da Universidade de Yale.

É óbvio que “darwinismo social” e “a sobrevivência do mais apto” foram utilizadas por Obama para invocar sentimentos de medo e aversão. É altamente improvável que Obama saiba algo sobre a história dessas ideias, e é ainda mais improvável que ele se importe com isso. Preocupação com a verdade não é algo comum no campo político. Mas essas expressões têm sido há muito tempo de interesse para mim, principalmente por causa do grande libertário Herbert Spencer ser frequentemente acusado de ter originado o darwinismo social.

Spencer – lembrando, ele nunca usou o termo “darwinismo social” – repetidamente protestou que suas visões tinham sido gravemente distorcidas, mas sem sucesso. Os mitos em torno de sua teoria da sobrevivência do mais apto tornaram-se padrões em gerações de livros-texto, e esses mitos receberam uma dose de adrenalina na produção de 1977 da BBC de John Kenneth Galbraith, The Age of Uncertainty. Essa série de televisão de treze partes, que teve como base o livro campeão de vendas de Galbraith de mesmo título, pretende ser uma história do pensamento econômico de Adam Smith aos tempos modernos, focando-se nas ideias sobre o capitalismo. Mas a série não é nada mais que propaganda esquerdista, repleta de distorções e mentiras. Galbraith declarou explicitamente o que Obama deixou para a imaginação do bobosia [N.R.: Neologismo de bobo + burguesia] americana (usando o termo memorável de H. L. Mencken).

Eu assisti a série The Age of Uncertainty pela primeira vez em 1977, quando foi transmitida pela afiliada da PBS em Los Angeles. Eu achei a série irritante o tempo todo, mas o que especialmente despertou a minha indignação foi o tratamento de Galbraith a Herbert Spencer – um segmento, de cerca de cinco minutos de duração, que mal continha um pingo de verdade (o segmento pode ser visto aqui, começando em 3:50).

Eu tive vontade de jogar meu busto de gesso do Adam Smith na tela da televisão, mas decidi por um curso de ação menos destrutivo. Eu escrevi um artigo, “O Real Herbert Spencer Irá se Levantar?”, que foi publicado no periódico Libertarian Review (dezembro de 1978). Depois de chamar a apresentação de Galbraith de “crua e grosseiramente imprecisa”, continuei:

“A interpretação tradicional de Spencer sobre essa questão está tão fundamentalmente errada – na verdade, Spencer explicitamente a repudiou em várias ocasiões – que alguém deve se perguntar se algum dos críticos de Spencer se deu ao trabalho de lê-lo.”

Alguns dias atrás, depois de ler o comentário de Obama sobre darwinismo social e decidir interromper minha série de artigos no Cato Institute sobre educação com esse artigo (e mais dois que virão), eu vi o segmento de Galbraith sobre Spencer novamente. É ainda mais deplorável do que eu lembrava. Tosco do começo ao fim, poderia ser confundido com uma paródia do Monty Python.

Imediatamente depois que Herbert Spencer é mencionado, vemos um tigre enjaulado devorando um pedaço de carne. Então, enquanto uma voz como se fosse de Spencer fala sobre a sobrevivência das espécies num contexto biológico, a câmera se move para uma placa que diz: “ESSES ANIMAIS SÃO PERIGOSOS”.

Segundos depois, Galbraith entra em cena e examina três manequins de capitalistas da época Vitoriana. Essas figuras, com dinheiro espalhado sobre seus pés – todos sabemos que os capitalistas prefeririam enterrar dinheiro que dá-lo aos pobres – são rotulados como “CAPITALOPITHECUS ROBUSTUS”. Galbraith arrasta seus pés e, em seguida, sussurra sobre os “altos primatas” que sobreviveram através da seleção natural: “Eles são os mais fortes da espécie, aqueles melhores adaptados ao seu meio, e, portanto, sobreviveram.”

Spencer em breve é citado novamente, mas desta vez somos apresentados a mais que uma voz. Vemos um ator numa maquiagem azul pálida que parece ter saído de um caixão. Depois desse zumbi ler uma passagem de Spencer sobre como os humanos se adaptam a suas “condições de existência”, a câmera volta-se novamente a Galbraith. Com um tigre empalhado à sua direita – um apoio para passar a mensagem, só em caso do tigre mostrado anteriormente ter deixado qualquer dúvida – Galbraith nos mostra que ele é um pensador sério ao colocar seus óculos de uma maneira profissional. Então ele continua a deturpar as ideias de Spencer com uma naturalidade indiferente.

Galbraith nos diz que Spencer aplicou sua doutrina da “sobrevivência do mais apto” não apenas à sobrevivência no reino animal, mas também “à sobrevivência no mundo igualmente cruel, como Spencer via, da vida econômica”. Spencer “eliminou toda a culpa” que os ricos poderiam sentir ao garanti-los que “a riqueza era o resultado natural da força, da inteligência, da habilidade de se adaptar. Os ricos eram beneficiários inocentes de sua própria superioridade”. Os pobres, de acordo com o Spencer fictício de Galbraith, eram “biologicamente inferiores” e “não eram selecionados”.

Deixando esse teatro brega de lado, praticamente a única declaração confiável que Galbraith faz sobre Spencer são os anos de seu nascimento e sua morte, e o fato que foi Spencer, e não Darwin, que criou a frase “sobrevivência do mais apto”.

Nossa primeira impressão geralmente irá determinar se iremos estudar um dado pensador ou teoria em maiores detalhes. Afinal de contas, devemos ser seletivos; não podemos, possivelmente, ler o que cada escritor proeminente já escreveu sobre cada questão significativa. É aí que o “livro-texto” de colégio desempenha um papel significativo em moldar a opinião pública. Se uma estudante do colegial, em seu primeiro livro-texto, depara-se com Spencer ou Sumner e relata-se que eles favoreceram um darwinismo social cruel, ela provavelmente terá pouco entusiasmo para ler sobre esses vilões por conta própria. E se essa estudante por acaso se tornar uma professora, ela ensinará a seus estudantes os mesmos erros que foram ensinados a ela.

Darwinismo social, como o rótulo tem sido aplicado à teoria libertária, é pura invenção. Por um lado, a abordagem de Spencer da evolução (que ele desenvolveu independentemente de Darwin) era essencialmente lamarckiana. Spencer, ao contrário de Darwin, acreditava que algumas características adquiridas são transmitidas geneticamente de uma geração para a próxima, e ele deu relativamente pouca ênfase no processo de seleção natural. Essa abordagem lamarckiana, apesar de suas falhas como teoria biológica, é um modelo melhor do desenvolvimento social que sua contrapartida darwiniana. Os humanos de fato constroem com base nas habilidades adquiridas e realizações das gerações anteriores – como vemos na linguagem, na transmissão de conhecimento, na tecnologia, no investimento de capital, nas instituições sociais, e semelhantes.

Tanto Spencer quanto Sumner usaram a frase “sobrevivência do mais apto”, e ambos viveram pra se arrepender disso, porque a frase fez deles alvos fáceis de seus críticos. Spencer reclamava que suas visões eram frequentemente distorcidas de maneira irreconhecível, e em alguns casos de forma deliberada. “Eu tenho tido muita experiência em controvérsias”, ele escreveu no fim de sua vida, “e minha impressão é que em três casos de cada quatro, as opiniões alegadas como minhas, condenadas por oponentes, não são de forma alguma opiniões minhas, mas são opiniões atribuídas erroneamente por eles a mim”. Sumner tornou-se tão frustrado pelo mesmo problema que ele parou de usar a frase “sobrevivência do mais apto” completamente; nunca mais apareceu em suas obras e discursos posteriores.

É em grande parte devido à doutrina da “sobrevivência do mais apto” que Spencer e Sumner foram condenados como darwinistas sociais. Darwinistas sociais, somos informados, eram inspirados por um desprezo severo e implacável pelos pobres, pelos deficientes e pelos desfavorecidos – aquelas pessoas alegadamente não-aptas que, por uma lei da natureza, devem ser sacrificadas na luta pela vida por aqueles que são mais aptos. É uma aposta segura que se você consultar um texto padrão sobre a história das ideias, você encontrará essa visão (ou uma aproximação) atribuída a Herbert Spencer e William Graham Sumner.

O propósito ideológico dessa caricatura é evidente. Os ataques dos livros-texto sobre Spencer e Sumner são destinados a caracterizar a atitude dos defensores do laissez-faire em geral. Temos avançado, diz-se, da atitude de um ‘mundo cão’ do darwinismo social e da economia laissez-faire para as políticas compassivas de bem-estar social dos governos modernos. É dito que os esquerdistas (ao contrário dos liberais clássicos, ou libertários) se preocupam mais com as pessoas do que com o lucro, que eles valorizam os direitos humanos acima da propriedade privada – e assim por diante, até nos afogarmos num mar de clichês maçantes.

Então o que Spencer e Sumner quiseram dizer por “sobrevivência do mais apto”? Antes de eu abordar essa questão, precisamos esclarecer o que eles não quiseram dizer.

Spencer repetidamente enfatizou que, ao usar os termos “apto” e ‘mais apto” num contexto social, ele não estava expressando um julgamento de valor; nem estava referindo-se a uma característica em particular, tal como força, riqueza ou inteligência; nem estava expressando qualquer tipo de aprovação ou desaprovação; nem estava se referindo à competição biológica para sobreviver. Essa doutrina, escreveu Spencer, “é expressável em termos puramente materiais, que não implicam nem competição, nem implicam melhor e pior”. Mais importante, “sobrevivência do mais apto não é sempre a sobrevivência do melhor”.

“A lei [da sobrevivência do mais apto] não é a sobrevivência do ‘melhor’ ou do ‘mais forte’… É a sobrevivência daqueles que estão constitucionalmente mais aptos a prosperar sob as condições em que eles se encontram; e frequentemente, o que humanamente falando é inferioridade, resulta em sobrevivência.”

Num contexto social, os “mais aptos” são aquelas pessoas que são capazes de se adaptar aos requisitos de sobrevivência em sua sociedade. Se, por exemplo, um governo decreta que todos os ruivos devem ser executados imediatamente, então se segue que as pessoas melhores adaptadas para sobreviver em tal sociedade são os que não são ruivos, ou aqueles ruivos naturais que se adaptam mudando a cor de seu cabelo ou raspando seu cabelo.

Podemos aplicar esse princípio da sobrevivência do mais apto sem condenar a pena contra ruivos, e sem considerar os não-ruivos como pessoas superiores. É um fato simples e inevitável: se um governo mata ruivos, então (outras coisas sendo constantes) você terá uma maior chance de sobreviver – isto é, você será mais “apto” sob as condições especificadas – se você não for ruivo.

Essa interpretação, que trata “sobrevivência do mais apto” como uma descrição livre de valor do que de fato ocorre, ao invés de uma prescrição ou uma aprovação do que deve ocorrer, também foi estudada por Sumner, que tentou – em vão, como aconteceu – corrigir as interpretações distorcidas de seus críticos.

“Eu li um artigo na reunião do Liberal Union Club, e pareceu-me que havia alguma má interpretação em relação à doutrina da sobrevivência do mais apto. Tal má interpretação é bastante comum apesar dos muitos esforços dos principais evolucionistas de corrigi-la. Supõe-se que a doutrina é que o melhor sobrevive. Esse é um erro, e forma a base de todos os conflitos sobre evolução e ética. Pois a palavra “melhor” implica padrões morais, um ponto de vista moral, etc.; e se a doutrina fosse afirmada dessa forma, não seria científica de forma alguma, mas seria teológica, pois envolveria a noção de que o homem é o fim da Criação e que suas noções das coisas são o padrão em que as coisas devem se adequar. A doutrina é que aqueles que sobrevivem são os que estão mais aptos a sobreviver.”

A ideia expressa aqui foi central para as teorias sociológicas de Spencer e Sumner. Ambos acreditavam que os seres humanos respondem a incentivos e que eles se adaptam a condições sociais através da formação de seus caráteres e hábitos. Ambos acreditavam que traços de caráter desempenham um papel mais importante na interação social que as crenças abstratas e teorias. Quais traços de caráter tendem a se desenvolver numa dada sociedade depende em grande parte das sanções políticas e sociais encontradas naquela sociedade, isto é, em quais tipos de comportamento são encorajados ou desencorajados, recompensados ou punidos.

Suponha que uma sociedade recompense a indolência e penalize a atividade. Neste caso, de acordo com Spencer, as pessoas indolentes tenderão a se sair melhor que os mais trabalhadores. O indolente, tendo se adaptado às condições de sua sociedade, estará mais “apto” que o trabalhador que fracassou em se adaptar. Esse é o significado da declaração frequentemente citada de Spencer, “O resultado final de proteger os homens dos efeitos da tolice é encher o mundo de tolos.”

George H. Smith é Senior Research Fellow do Institute for Humane Studies, também é professor de História Americana nos Seminários de Verão do CATO Institute. Recentemente, Smith teve seu quarto livro, “The System of Liberty”, publicado pela Cambridge University Press

Tradução de Robson Silva; revisão de Ivanildo Terceiro

Esta matéria foi originalmente publicada pelo Libertarianism.org