Autoridade médica chinesa admite que órgãos foram extraídos sem consentimento

28/08/2013 15:47 Atualizado: 20/04/2014 21:08
Afirmação ameaça os apoiadores internacionais à autoridade de transplante da China
Yang Chunhua, diretor da Unidade de Terapia Intensiva do 1º Hospital Afiliado da Universidade Sun Yat-sen, província de Guangdong, China (Imagem de tela)
Yang Chunhua, diretor da Unidade de Terapia Intensiva do 1º Hospital Afiliado da Universidade Sun Yat-sen, província de Guangdong, China (Imagem de tela)

Uma proeminente autoridade de transplante da China fez uma rara admissão numa entrevista a uma publicação estatal recentemente, dizendo que eles têm usado há anos os órgãos de prisioneiros executados para transplante sem a obtenção de consentimento.

Apesar de isso já ser aceito como uma realidade entre os pesquisadores da colheita forçada de órgãos na China, a admissão de um oficial-médico é surpreendente. A questão do consentimento é crucial para a ética médica, uma vez que, no caso da extração e do transplante de órgãos, isso é frequentemente visto como a linha divisória entre uma prática eticamente aceitável e um crime contra a humanidade.

As observações apareceram numa entrevista de 16 de agosto realizada pelo Global Times, uma subsidiária do Diário do Povo, uma mídia estatal porta-voz do Partido Comunista Chinês (PCC). Yang Chunhua, diretor da Unidade de Terapia Intensiva do 1º Hospital Afiliado da Universidade Sun Yat-sen, na província de Guangdong, fez a admissão ao tentar apresentar um ponto mais amplo sobre as reformas que as autoridades dizem estar realizando no sistema de transplante chinês.

O jornal disse: “Anteriormente, as autoridades usaram órgãos de criminosos executados sem o seu consentimento, enquanto que a permissão tem sido exigida nos últimos anos”, citando Yang. No entanto, a colheita de órgãos de prisioneiros continua até hoje, pois não há doadores voluntários suficientes na China para atender à demanda.

Embora não fosse a intenção do Yang, ele também deu razão aos críticos do sistema de transplante da China, admitindo que suas exposições de abusos no sistema estariam impulsionando alguns dos esforços de reforma.

“A China tem sido criticada por violar os direitos humanos ao usar órgãos de criminosos”, disse Yang em entrevista ao Global Times. “Os médicos chineses não têm sequer a oportunidade de publicar seus artigos sobre transplantes de órgãos em revistas internacionais.”

Yang é uma figura de referência no sistema médico e de transplante da China. O hospital, cuja UTI ele é o diretor, foi a alma-mater de Huang Jiefu, que também atuou como presidente no local até 2001 e publicou artigos científicos sob a égide do instituto até recentemente.

A razão para a admissão de Yang não está clara, embora seja parte de uma série de admissões que começaram há vários anos. “A linha oficial do PCC por muitos anos foi a de que todos os órgãos eram doados, mesmo quando não havia qualquer sistema de doação”, escreveu David Matas, um advogado canadense e coautor de um relatório sobre a colheita de órgãos de praticantes do Falun Gong, numa entrevista por e-mail. “A crítica de quem dissesse o contrário, que os órgãos vieram de prisioneiros, era tratada [pelo regime chinês] como ridícula e indignante.”

Antes de 2006, o PCC e o estabelecimento médico da China estavam convencidos de que todas as doações de órgãos no país eram voluntárias.

Depois que evidências vieram à tona em 2006 da colheita de órgãos em grande escala de prisioneiros da consciência, predominantemente praticantes do Falun Gong, uma disciplina espiritual tradicional que é perseguida na China, as autoridades começaram a fazer admissões fragmentadas. Em 2008, Huang Jiefu admitiu na revista médica Lancet que a maioria dos órgãos transplantados na China era de prisioneiros executados.

A questão do consentimento é outra questão. A comunidade médica internacional considera que o consentimento dos prisioneiros no corredor da morte não é significativo porque os prisioneiros podem estar sujeitos à coerção. Mesmo que isso fosse aceito, a noção de que os órgãos na China foram obtidos com consentimento foi mantida por décadas, até que a admissão de Yang ressaltou que o consentimento foi obtido apenas “nos últimos anos”. David Matas escreve: “Ver o PCC admitir a verdade, quando a verdade coloca-os sob uma luz ruim, é um evento surpreendente.”

Ele acrescentou: “A admissão que vemos agora certamente não é que as autoridades descobriram apenas hoje que não houve consentimento no passado. É uma admissão de que eles sempre souberam que não havia consentimento. É uma confissão de enorme cumplicidade em crimes contra a humanidade.”

De acordo com Arne Schwarz, um pesquisador independente baseado na Suíça e premiado por seu exame dos abusos relacionados ao sistema de transplantes chinês: “[Yang] admitiu que as autoridades chinesas cometeram um crime hediondo, mesmo de acordo com seus próprios padrões dúbios.”

A admissão é problemática para os adeptos internacionais das pessoas identificadas como reformadores do estabelecimento médico chinês, segundo Matas e Schwarz. A Sociedade de Transplante, principalmente, tem sido uma defensora aberta do trabalho de Huang Jiefu, o ex-vice-ministro da Saúde e atual chefe do Comitê de Transplante de Órgãos da China, um órgão recém-criado encarregado de revisar o sistema de transplante construído para a colheita de órgãos de prisioneiros (de fato, em sua maioria, prisioneiros da consciência).

Ao dizer que só “nos últimos anos” tem sido obtido consentimento, Yang também está dizendo que o próprio Huang Jiefu teria extraído órgãos de prisioneiros involuntários, segundo Schwarz.

“Huang Jiefu esteve pessoalmente envolvido na colheita forçada de órgãos de prisioneiros e no comércio de órgãos com estrangeiros, porque ele foi cirurgião-líder de transplante de fígado e presidente-responsável na Escola Médica Sun Yat-sen” em 2000, diz Schwarz.

De acordo com um artigo do Diário da Manhã do Sul da China de janeiro daquele ano, um médico do 1º Hospital Afiliado da Universidade Sun Yat-sen de Ciências Médicas disse a um repórter que “um transplante de fígado poderia ser facilmente arranjado e que o consentimento não era um problema. Não havia disposição legal na China continental para prisioneiros darem consentimento para doação de órgãos.” Na época, o diretor do hospital era Huang Jiefu.

Numa entrevista com a mídia estatal Xinhua em 2010, Huang disse: “Foi o 1º Hospital Afiliado Sun Yat-sen que me educou e foi minha experiência naquele hospital que me tornou o homem que sou hoje.”

“Este homem, pessoalmente envolvido em todos esses crimes, além dos mais de 500 transplantes de fígado que ele fez pessoalmente, foi premiado pela Sociedade de Transplante e pela Universidade de Sydney”, disse Schwarz.

De acordo com o livro de um empresário favorecido pelo PCC, a Sociedade de Transplante deu a Huang um prêmio de destaque internacional por seu trabalho com o “transplante na China”. A instituição não respondeu a um e-mail inquirindo sobre o prêmio.

Em 2008, a Universidade de Sydney concedeu a Huang o título de professor-honorário, que foi renovado em 2011, apesar das severas objeções de especialistas locais e internacionais. A universidade publicou uma note em defesa de Huang em abril, dizendo que “ele tem sido um crítico ferrenho da captação de órgãos de prisioneiros executados desde 2005”.

Nem a Universidade de Sydney nem o Dr. Francis L. Delmonico, o presidente da Sociedade de Transplante, responderam a vários pedidos de comentários sobre se suas posições sobre as realizações de Huang e seu papel no sistema de transplantes chinês tinham mudado à luz das revelações de Yang.

“Estes prêmios e essa cooperação deveriam ser revogados”, diz Schwarz. “Caso contrário, eles prejudicarão a credibilidade ética da medicina de transplante em todo o mundo.”