Do ataque para defesa, China altera narrativa sobre comércio ilegal de órgãos

26/11/2014 16:05 Atualizado: 26/11/2014 16:05

Negar, negar, negar – essa é a cartilha padrão na política para esquivar-se de acusações indesejáveis e isso tem sido usado habilmente pelo Partido Comunista Chinês numa ampla gama de questões desde sua emergência.

Mas para um conjunto de alegações gravíssimas – que o regime comunista chinês e seus subordinados de fato têm extraído à força dezenas de milhares de órgãos de prisioneiros de consciência para lucrar com o comércio de transplante –, inclusive suas desculpas e negações têm servido apenas para confirmar sua culpa pelo crime.

Nesse caso, a estratégia desde 2006 era ignorar em absoluto as acusações e os volumes de evidências ou espalhar propaganda sobre os indivíduos e organizações que abordavam a questão.

Mas, recentemente, pela primeira vez, parece haver uma ligeira modulação dessa estratégia: do silêncio à fria negação.

Esta nova estratégia de propaganda parece ter se infiltrado num artigo recente publicado na China Medical Tribune, uma publicação semioficial da comunidade médica chinesa. Intitulado “Assembleia de transplante de órgãos da China responde oficialmente às suspeitas da imprensa estrangeira”, o artigo faz referência proeminente, incluindo uma imagem de tela, a um relatório publicado pelo Minghui, um conhecido website associado com os praticantes do Falun Gong.

O Minghui é famoso por sua extensa reportagem de primeira mão, feita por praticantes do Falun Gong, sobre a perseguição a esta disciplina na China. O Falun Gong é uma prática espiritual tradicional chinesa que tem sido perseguida na China desde 1999.

A publicação chinesa refere-se a um relatório detalhado do Minghui de 2009, que concluiu que os prisioneiros de consciência do Falun Gong seriam uma importante fonte de órgãos na China para o comércio de transplante, pois os prisioneiros condenados à morte na China são muito poucos em relação ao volume anual de transplante de órgãos. A réplica do regime chinês incluía ainda o link, ainda ativo, para o relatório.

Em 2006, surgiram pela primeira vez alegações de que os hospitais militares chineses estavam usando praticantes do Falun Gong como um banco de órgãos de pessoas vivas: coletando amostras de sangue e executando as vítimas sistematicamente para usar seus órgãos.

Essas alegações foram feitas pela primeira vez em 2006 por dois pesquisadores canadenses num relatório intitulado ‘Colheita Sangrenta’, que apontou para os tempos de espera extremamente curtos (de uma ou poucas semanas) para se conseguir órgãos compatíveis, algo que leva anos em países com sistemas avançados de doação à base de voluntários.

Entre outras evidências, médicos e enfermeiros chineses também admitiram em telefonemas gravados secretamente que eles usavam órgãos de prisioneiros do Falun Gong.

As evidências continuaram a se acumular e as Nações Unidas, a União Europeia, o Congresso dos Estados Unidos e organizações médicas e grupos de direitos humanos pediram que as autoridades chinesas se explicassem.

Invariavelmente, as autoridades chinesas se atreveram apenas a atacar os investigadores ou afirmar que as acusações eram parte de uma trama inexplicável do Falun Gong para minar a reputação do Partido Comunista. “Propaganda reacionária” foi o termo técnico utilizado pelos propagandistas do Partido Comunista Chinês (PCC) para repudiar as bem-embasadas alegações. As desculpas do regime frequentemente também eram baseadas em análises triviais de publicações estatais chinesas.

Nunca antes uma publicação com laços oficiais fez referência proeminente às alegações – mesmo que para negá-las.

“Minha opinião sobre isso é que a preocupação sobre o abuso [da extração forçada de órgãos] têm emergido de várias direções que o Partido Comunista Chinês não pode ignorar”, escreveu David Matas, um dos coautores do relatório seminal sobre a extração forçada de órgãos do Falun Gong, num e-mail. “Assim, em vez de fingir que a preocupação com o abuso não existe, eles mudaram a abordagem para negar o abuso.”

“Negar as críticas, em vez de ignorá-las, tem a desvantagem de dar publicidade à crítica, que é o que estamos vendo agora. Se a crítica é pouco conhecida, o silêncio é muitas vezes a melhor estratégia”, continuou Matas. “No entanto, se a crítica já é amplamente conhecida, então o silêncio não serve para nada.”

“As autoridades comunistas chinesas devem ter concluído que o conhecimento sobre o assassinato de praticantes do Falun Gong por seus órgãos se tornou tão difundido que eles têm menos a perder negando o fato do que o ignorando”, escreveu Matas.

A atenção negativa por parte da comunidade médica internacional de transplante pode ter ajudado a forçar a mão do PCC.

Apesar de não se referir à extração foçada de órgãos de prisioneiros de consciência, a Sociedade de Transplantes, o grupo médico mais preeminente que representa os profissionais globais de transplante, escreveu uma carta diretamente ao líder chinês Xi Jinping no início deste ano dizendo que as autoridades chinesas quebraram suas promessas de reformar seu sistema de transplante de órgãos, porque continuam extraindo órgãos de prisioneiros no corredor da morte.

Como resultado da promessa quebrada, as organizações médicas internacionais não compareceram à Conferência Nacional de Transplantes da China no final de outubro. O mesmo artigo no website da China Medical Tribune fez uma referência evasiva ao deslize, dizendo: “Em comparação com antigamente, muitos especialistas estrangeiros em transplante não puderam comparecer.”

Os ‘Médicos Contra a Extração Forçada de Órgãos’ (DAFOH), um grupo médico de defesa baseado em Washington DC, haviam advertido anteriormente os cirurgiões ocidentais sobre participarem em eventos de transplante chineses e, assim, dar legitimidade às práticas inescrupulosas do regime chinês.

“Consideraríamos antiético que qualquer profissional participasse deste congresso de transplante em Hangzhou devido aos abusos desenfreados de transplante de órgãos na China e da ausência de remorso por parte do regime chinês, exceto se uma pessoa estiver indo com o propósito expresso e exclusivo de falar contra isso”, diz um comunicado no website dos DAFOH.

O dr. Torsten Trey, diretor-executivo dos DAFOH, disse numa entrevista por telefone que o artigo recente foi sugestivo. Ele referiu-se em particular a uma observação enigmática de Huang Jiefu, que disse que “não é o momento ainda” para inspeções internacionais das práticas chinesas de extração de órgãos. Huang é o ex-vice-ministro da Saúde da China e a pessoa encarregada de lidar com a comunidade internacional em tudo que diz respeito ao sistema de transplante de órgãos da China.

“Por que ‘não é o momento ainda’? Isso sugere que as inspeções encontrariam algo indesejável ou inapropriado”, disse Trey. “A Sociedade de Transplantes tentou abordar a China, mas o comentário de Huang Jiefu sugere que ele sabe mais do que compartilhou com eles.”