Assassinato recente reabre uma ferida profunda da China

14/06/2014 11:47 Atualizado: 14/06/2014 11:47

Primeiro, as autoridades tentaram minimizar o assassinato. Em seguida, eles admitiram os fatos. No final, o povo chinês foi apenas lembrado do alto custo da justiça na China.

Em 31 de maio, um vídeo mostrando um homem, quatro mulheres e um menino espancando uma jovem até a morte num restaurante do McDonald’s se tornou viral na China. O assassinato ocorreu em 28 de maio na cidade de Zhaoyuan, na província de Shandong, Leste da China.

Em 29 de maio, a polícia de Zhaoyuan postou uma breve descrição do caso em seu microblog oficial. As palavras “discussão”, “espancamento”, “ferimentos” e “insucesso em salvá-la” foram usadas mesmo que não tenha havido qualquer discussão e que a vítima tenha morrido no próprio local. Os nomes completos dos suspeitos e da vítima não foram mencionados.

Depois que o vídeo apareceu, ainda em 31 de maio, a polícia de Zhaoyuan postou outra mensagem em seu microblog. Desta vez, os suspeitos se revelavam membros de um grupo chamado “Igreja do Deus Todo-Poderoso”. Eles atacaram e espancaram até a morte uma mulher que se recusou a dar-lhes seu número de telefone, segundo a mensagem.

Mesmo que a família de seis suspeitos de assassinato possuísse três carros, incluindo um Porsche Cayenne que os levou ao McDonald’s naquele dia, nenhum deles teve um emprego nos últimos sete anos, segundo a polícia.

O principal suspeito, um homem chamado Zhang Lidong, foi levado à emissora estatal China Central de Televisão (CCTV) em 31 de maio, algo que atualmente se tornou uma prática comum. A estação de TV expõe e humilha suspeitos em público antes que qualquer julgamento formal tenha ocorrido.

Na verdade, as autoridades encenam as aparições na TV para que os suspeitos possam ser mostrados dizendo o que for conveniente e necessário às autoridades. Neste caso, Zhang admitiu ser um membro da Igreja do Deus Todo-Poderoso, estar desempregado e ter matado a jovem porque ela seria um “diabo”. Estas características ilustram como o Partido Comunista Chinês (PCC) retrata um membro de “culto”.

Questionado sobre por que as autoridades de Zhaoyuan levaram três dias para divulgar o caso, o chefe do Departamento de Propaganda do PCC em Zhaoyuan explicou que o caso foi relatado pela primeira vez à segurança pública provincial e em seguida à central do Ministério da Segurança Pública (MSP). O MSP decidiu a natureza do caso e o Departamento de Propaganda disse que o atraso na divulgação do caso visava a evitar interferência na sua resolução.

O suspeito é rico e proprietário de uma mina de ouro. De acordo com um internauta, o chefe de polícia de Zhaoyuan é um bom amigo do suspeito. Mesmo que esse detalhe não tenha sido confirmado, esta versão explica o Porsche e o anúncio discreto e cauteloso da polícia.

A polícia local primeiramente tentou encobrir o crime. Quando o MSP se envolveu, a questão religiosa apareceu e o caso se tornou mais político do que criminal.

Campanha anticulto

Liderados pela CCTV, mídias porta-vozes do regime chinês iniciaram uma campanha de propaganda anticulto como não se vê na China há pelo menos 10 anos. Em 2 de junho, o Noticiário Legal, uma mídia afiliada ao Comitê do PCC em Pequim, listou 14 grupos religiosos como “organizações cultistas oficialmente proibidas”.

Internautas imediatamente perceberam que o Falun Gong, uma prática espiritual baseada nos princípios de verdade, compaixão e tolerância e que tem sido perseguida na China nos últimos 15 anos, não estava na lista.

O famoso advogado de direitos humanos Jiang Tianyong postou em seu Twitter: “O Falun Gong tem sido perseguido pelo PCC sob o pretexto de ser um culto por quase 15 anos. Numerosos praticantes têm sido perseguidos, desaparecidos, encarcerados, submetidos a trabalhos forçados e lavagem cerebral. No entanto, ele [o Falun Gong] não está na lista dos 14 ‘cultos’ nomeados. Onde está a base legal para tantos anos de perseguição cruel e sangrenta?”

Jiang Tianyong teve sua licença de advogado revogada na China por defender casos de direitos humanos, incluindo mais de 20 casos envolvendo o Falun Gong. Ele também foi vítima da brutalidade policial.

É um bom argumento legal ressaltar que o Falun Gong não está na lista “oficial”. No entanto, também é importante ressaltar que a lista mesma é ilegal.

A lista veio de um documento secreto interno de 2000 do MSP, intitulado “Boletim No. 39 de 2000 do MSP”. Das 14 organizações listadas como “cultos”, 7 foram determinadas pelo Gabinete do Comitê Central do PCC e pelo Gabinete do Conselho de Estado, e as outras 7 foram determinadas pelo próprio MSP.

O documento secreto foi exposto em 2002 por um grupo cristão de direitos humanos baseado em Nova York chamado “Comissão para Investigação da Perseguição à Religião na China“.

Nem o Comitê Central nem o Conselho de Estado nem o MSP têm autoridade ou competência para elaborar tal lista. Nem uma única lei nem qualquer coisa na Constituição chinesa autorizam esses órgãos do Estado e do Partido Comunista a rotularem qualquer grupo como “culto”.

Chocado com as respostas dos internautas, alguém fez uma “correção” no dia seguinte. A Xinhuanet relatou que o website “Kaiwind” citou uma lista de 20 “cultos em atividade” da Associação Chinesa Anticulto (ACAC) e desta vez o Falun Gong foi incluído.

O PCC estabeleceu a ACAC em 2000 para ajudar na perseguição ao Falun Gong. Mesmo que ela receba ordens diretamente da Central da Agência 610 – uma subdivisão da polícia secreta chinesa encarregada de “erradicar” o Falun Gong –, a ACAC afirma ser oficialmente uma ONG.

O website “Kaiwind” não fornece qualquer informação sobre seu proprietário, quem hospeda o site ou mesmo os nomes dos autores originais de seus artigos. Na verdade, o website é administrado pela Central da Agência 610, mas isso é um segredo de Estado.

Como pode uma “ONG” autonomeada decidir o que são cultos e, por meio de um website anônimo, “corrigir” o erro do Partido Comunista Chinês e uma decisão ilegal de órgãos do Estado? Este é um sinal de fraqueza e da luta de poder no topo da liderança comunista chinesa.

Sempre ilegal

Na verdade, a perseguição ao Falun Gong tem sido ilegal desde o início. Pelos primeiros três meses, a campanha de repressão foi baseada em dois regulamentos ministeriais emitidos em 22 de julho de 1999, dois dias após a perseguição começar.

O Ministério dos Assuntos Civis “baniu” o registro da Sociedade de Pesquisa do Falun Dafa, mesmo que esta Sociedade de Pesquisa de Pequim tenha sido dissolvida três anos antes.

Em seguida, o MSP ampliou a “proibição” a todas as atividades relacionadas ao Falun Gong e seus praticantes. Ambos os ministérios não têm competência para “proibir” qualquer organização. Além disso, a “proibição” também violou a Constituição chinesa, que promete a liberdade de religião.

Três meses mais tarde, provavelmente percebendo que a perseguição não tinha base jurídica, o então líder chinês Jiang Zemin rotulou o Falun Gong de “culto” numa entrevista com o jornal francês Le Figaro em 25 de outubro de 1999. Três dias depois, o Diário do Povo, um jornal estatal porta-voz do PCC, publicou um comentário especial repetindo a afirmação de Jiang Zemin.

Percebendo que a reivindicação de Jiang Zemin e do Diário do Povo ainda não conferiam base jurídica para a perseguição, o Comitê Permanente do Congresso Popular Nacional apressadamente aprovou uma decisão para proibir “seitas heréticas”. Esta “proibição” também violou a Constituição chinesa e nenhuma organização específica foi mencionada.

Por que a maioria dos chineses – e a maioria da mídia ocidental – acreditou que o Falun Gong foi proibido na China? A enxurrada de propaganda de ódio do regime chinês turvou a questão, de forma que uma campanha política do Partido Comunista foi confundida com uma questão de estado de direito.

Espectadores

Muitos internautas têm perguntado por que os espectadores não ajudaram a jovem. Não é que as pessoas não quisessem ajudar. De acordo com a polícia, eles receberam pelo menos 10 chamadas de emergência relatando o espancamento.

Um internauta de pseudônimo “Zhaocaijinbao” provavelmente deu a melhor explicação por que os espectadores não interviram: “Se eu realmente salvasse a mulher, mas ferisse o assassino, eu definitivamente teria de pagar por isso. O assassino se tornaria a vítima e o bom samaritano se tornaria o suspeito. Se a família do suspeito tem ligações com pessoas poderosas de Zhaoyuan, as consequências seriam ainda piores.”

Esta é a situação na China. Na maioria dos casos de gangues espancando pessoas inocentes em público, funcionários do Partido Comunista ou do Estado estão por trás do crime. Muitos incidentes de massa – protestos ou manifestações de mais de 50 pessoas – são desencadeados porque a polícia protege criminosos que têm conexões ou são eles próprios membros do regime.

Para algumas pessoas, assumir um risco para salvar uma vida vale a pena. Mas, assumir um risco apenas para ser enquadrado pela polícia, ou pior ser baleado pelas autoridades e em seguida incriminado, é outra história. Numa população normal, há sempre alguém disposto a se sacrificar pela justiça. Mas isso não é a escolha da maioria das pessoas.

Onde estão essas pessoas agora? Li Wangyang, um ativista dos direitos trabalhistas e da Praça da Paz Celestial, foi assassinado pelas autoridades provinciais de Hunan em 2012. Os advogados Tang Jingling e Chang Boyang, que assumiram inúmeros casos de direitos humanos, incluindo alguns envolvem o Falun Gong, estão agora em custódia policial. A lista de exemplos é longa.

O incidente de 28 de maio não foi o primeiro em Zhaoyuan em que bandidos espancaram uma jovem até a morte. Em outubro de 1999, três meses após Jiang Zemin iniciar sua campanha política contra o Falun Gong, policiais espancaram até a morte a sra. Zhao Jinhua, uma praticante do Falun Gong de Zhaoyuan, 10 dias depois de a terem raptado.

Zhao foi o primeiro caso relatado de morte por tortura de um praticante do Falun Gong após o início da perseguição. Quando punir o bem e promover o mal se torna política de Estado, como podemos esperar que alguém se arrisque para salvar os outros?