Durante sua recente viagem a Nova York para promover seu novo filme, Cui Jian, o maior astro de rock da China, foi perguntado por um jovem estudante chinês como o massacre da Praça da Paz Celestial de 1989 mudou a sua vida. Cui deve muito de sua fama por ter cantado a balada de rock “Nada em meu nome” para os estudantes que protestavam na praça, duas semanas antes de muitos deles terem sido fuzilados com metralhadoras e atropelados por tanques.
“Nós não entendíamos as coisas na época”, disse Cui, em resposta. “No meu filme, eu olho para a questão da amnésia traumática. Ninguém na China se atreveria a me perguntar o que você me perguntou. Há um espaço em nosso âmago onde essas memórias se encontram, e que nunca desaparecerá. Eu o levarei até este espaço no meu filme. Nossa memória está lá. Será que nós ousaríamos olhá-la?”
Foi uma introdução de véspera para sua estreia como diretor de “Blue Sky Bones”, exibido na sexta-feira (7) à noite na Universidade de Nova York (NYU). A exibição acompanhou dois dias de discussões, num estilo seminário, entre Cui e um pequeno grupo de artistas, amigos, acadêmicos e jovens chineses boêmios que estudam temas como cinema e música na NYU.
Cui se situa numa posição exaltada no mundo da música chinesa contemporânea e em particular no rock. Jonathan Campbell, autor do livro “Red Rock”, escreve que Cui é o progenitor da “experiência musical e visceral do rock da China”. Zhang Xudong, um dos professores que ladeavam Cui nos seminários, caracterizou sua posição no cenário musical chinês como pareado com “The Beatles, The Rolling Stones e Bob Dylan”, tudo combinado num só.
Cui usava um boné de beisebol branco de marca com uma estrela vermelha na frente, calças pretas e um suéter semi-gola alta preto sob um casaco preto de couro sintético. Durante três horas, por dois dias consecutivos, ele respondeu a perguntas e deu respostas extensas que abordavam temas tão diversos como literatura, política, mídia, dança, música clássica e física moderna.
Censura e estilo
As sessões da tarde foram também uma ocasião para Cui expor como ele procura manter um senso de verve revolucionária em sua música sem perturbar as autoridades. “Rock & Roll é sempre política”, disse ele. No caso de Cui, isso não seria nenhum exagero.
Numa entrevista na estação de rádio “The Breakfast Club” da Power 105.1 FM no ano passado, Kanye West comentou certa vez que a música rap é “apenas uma câmara” que dá espaço para sua expressão criativa. Para Cui Jian, uma câmara foi evidentemente considerada insuficiente: ele experimentou com rap, rock, cinema, composição e dança. Seu novo filme abrange todas essas influências e muito mais.
O filme também tenta rasurar a fronteira do proibido e do permitido: inovando, sem ir longe demais; criando algo com significado e uma mensagem, mas suficientemente velado para não irritar os inquisidores notoriamente sensíveis da imagem do Partido Comunista Chinês. A qualquer momento, eles tinham o poder de parar o filme em desenvolvimento.
O que não aparece no filme é, portanto, quase tão importante quanto o que está lá. Nas sessões de pergunta e resposta na sexta-feira, Cui disse que o sistema de censura da China molda fundamentalmente o tipo de trabalho que ele é capaz de produzir. “Eu já passei pelo meu próprio filtro de autocensura. Eu fiz o trabalho por eles para que não tivessem de se preocupar”, disse ele, em resposta a uma pergunta de um membro da plateia após a exibição do filme na sexta-feira.
“Há um terço de mim que é um líder do Partido Comunista”, disse ele no início da tarde. O resultado é o que acontece quando uma força irresistível – o desejo ardente de criar e de se expressar, de cumprir a responsabilidade moral do artista para com sua sociedade – encontra um objeto impassível – a determinação do Partido Comunista de garantir que não percam o controle da esfera cultural e assim sua capacidade de moldar os pensamentos do povo chinês. Talvez isso possa ser chamado de uma substância sob enorme pressão.
“A pressão da censura aos poucos forma seu próprio estilo artístico”, disse ele. Há inúmeros exemplos na história chinesa de artistas e poetas que incorporam seu significado em metáforas históricas enigmáticas.
Cui se vê como uma continuidade desta tradição: existir dentro do sistema de censura, enquanto se mantem fiel a si mesmo, sacrificando-se sempre que necessário, mas nunca desistindo da missão de transmitir uma mensagem ao público que ajude a promover a mudança social.
“Você tem de ter um senso de proporção: em relação à quantidade de medo que você tem dentro de si e a quantidade de sinceridade que carrega consigo. Você não pode permitir que o seu medo sobrepasse todo o resto. Pois isso não seria mais uma obra de arte”, disse ele. “É um jogo, mas é um jogo de como você permanece verdadeiro para si mesmo.”
Em seu filme, disse ele, há esse medo, mas também “uma maneira inteligente de lidar com ele”. Em resposta aos comentários em inglês já publicados, Cui disse: “No mercado ocidental, filmes como o meu podem parecer muito torturantes, não é direto o suficiente. Mas se eu o fizesse de forma tão direta, isso nunca poderia ser feito.”
‘Nem uma coisa nem outra’
“Blue Sky Bones” não é um filme convencional, com uma narrativa linear realista: Ele está cheio de flashbacks, montagem, surrealismo e loopings incessantes no tempo. A estrutura do filme serve para reforçar um dos pontos conceituais de Cui: que o passado está sempre conosco, mas que um nível de coragem é necessário para que a China contemporânea possa trazê-lo para o seu devido lugar no presente.
A narrativa principal do filme segue em linhas gerais a criação e execução de uma peça musical, chamada “Blue Sky Bones”, de um produtor musical e hacker de computador chamado Zhonghua, o protagonista. A canção é uma tomada moderna baseada num escrito de sua mãe da época da Revolução Cultural, quando ela fora despachada para um grupo de arte e dança na China rural.
Este conto – do pai e da mãe de Zhonghua – é um segundo arco narrativo do filme, que fornece a base para o presente. O recorte entre esses dois planos temporais, antes que convirjam no final, reforça o sentido de pertença ao passado no presente. “A música ‘Blue Sky Bones’ é basicamente… uma história de autocontradição. O mesmo pode ser dito sobre ‘Nada em meu nome’”, disse Cui. “É sobre a relação que você estabelece com sua realidade e seus ideais.”
O filme também é repleto de metáforas e simbolismo, alçando profundamente na história contemporânea e pré-moderna da cultura chinesa. Um motivo central inescapável é a imagem de um peixe na água ansiando por ser um pássaro no céu. Isto aparece numa canção composta por Zhonghua e em imagens e dança que fazem parte de seu desempenho final.
As imagens e seu contexto lembram fortemente a expressão “nem uma coisa nem outra”, que não tem correspondência direta em chinês, mas seria análoga a “nem mula nem cavalo”.
Do mesmo modo, a expressão refere-se a um estado de tensão e irresolução. Isso, numa palavra, é a China contemporânea: o fervor do compromisso comunista irremediavelmente desacreditado, as aspirações de liberdade amplamente compartilhadas e a democracia esmagada, o Partido Comunista ordenando a população a ganhar dinheiro e a esquecer de tudo mais, a supressão brutal da fé que poderia forjar uma nova fundação espiritual – com o resultado que a República Popular da China não tem uma narrativa legítima e coesa nem uma fundação moral comum.
O desfecho do filme de Cui mostra que a China é um país que não é uma coisa nem outra. Mas também mostra que a arte pode ser transformadora, um lugar para o indivíduo se reafirmar e criar o seu próprio significado. Seria este o peixe olhando para o céu?
Em suas observações na sexta-feira sobre sua relação emaranhada com o aparato de censura do Partido Comunista, Cui concluiu da seguinte forma: “O ponto final não é sobre a repressão, mas que a repressão se tornou um elemento da minha arte.”