Arsenal das Farc é o bastante para armar um país pequeno

25/07/2014 13:24 Atualizado: 25/07/2014 13:24

Os principais traficantes de armas comercializaram com as Farc por muitos anos, o que gerou um enorme arsenal que hoje se converte em um desafio para a sociedade no pós-conflito.

Conspirando com esse emissário das Farc, o traficante Ioannis Viglakis se viu ante o negócio mais suculento de sua vida. E ao ouvi-lo dizer que o pedido era para atacar as forças norte-americanas na Colômbia, o grego se despachou com o melhor de seu catálogo: rockets, lança-mísseis terra-ar e rifles de assalto a granel. Ofereceu tudo isso em troca de grana e cocaína, e como prova de “boa-fé”, coordenou a entrega inicial de seis lança-foguetes RPG na Europa.

Viglakis ignorava que aquele comprador não era um representante da guerrilha, senão uma fonte encoberta do DEA. Seu truque finalizou em 2012 e, ante a contundente prova de sua própria voz gravada e o arsenal entregue, não teve mais remédio que aceitar a culpa, em dezembro passado, em um tribunal de Nova York. No intrincado panorama do conflito colombiano, o tráfico mundial de armas desempenha um papel crucial. É o mercado que deu dentes à insurgência para sustentar uma confrontação desde 1964, com um fluxo constante de compras, fogo cruzado e apreensões.

O material bélico dos ilegais, com o qual realizaram 82 perseguições, 19 ataques a instalações, 17 retenções ilegais, 10 emboscadas e 5 ataques a aeronaves entre janeiro de 2013 e maio de 2014, segundo o Ministro da Defesa, e com o qual mataram 301 membros da Força Pública, é hoje uma das principais dúvidas do processo de paz em Cuba. Os delegados das Farc dizem que o governo não terá a foto deles entregando os fuzis, questão que desperta temores sobre o destino final de um arsenal não quantificado, com o qual se poderia dotar um exército de um país em desenvolvimento.

Os mercadores da morte

Assim como Viglakis, pelo leque de fornecedores da subversão passaram os traficantes mais tenebrosos do planeta. O mais exótico é o sírio Monzer al Kassar, cognome “o Príncipe de Marbella”, que tinha em tal cidade espanhola um palácio desde o qual controlava um império criminoso desde os anos 70, com clientes na Nicarágua, Brasil, Chipre, Bósnia, Croácia, Somália, Irã, Iraque, Palestina e, certamente, nossa nação (Colômbia). Paradoxalmente, embora todos os traficantes queiram pactos com a criminalidade colombiana, fazê-lo converte-se em sua perdição. Assim caiu al Kassar, quando preparava um embarque para as Farc em junho de 2007, segundo o DEA.

O lote era composto por 12 mil armas, que incluíam metralhadoras, fuzis, pistolas, lança-granadas, sistemas de mísseis terra-ar, 2 milhões de munições e uma tonelada de explosivo C-4. O convênio incluía instrutores para o manejo deste último elemento e mil combatentes para apoiar “a causa revolucionária”. O carregamento ia avalizado por um certificado de destino final fraudulento (nº 0010-2006) do governo nicaraguense, que indicava que a mercadoria era para a Polícia desse país. A transação foi interceptada pelo DEA e agora al Kassar purga um pena de 30 anos (desde 2009).

Destino similar padeceu o traficante mais famoso do mundo moderno: o ex-militar russo Victor Bout, “o Mercador da Morte”. Por duas décadas alimentou conflitos na África, Europa e Oriente Médio, e sua maldição foi surtir as Farc. Em uma reunião com supostos emissários (2008), disse-lhes que “compartilhava sua causa” e que tinham “o mesmo inimigo”. Ofereceu-lhes, além do usual, inovações para combater a força pública de igual para igual: aviões ultra-leves equipados com mísseis, lentes de visão noturna e veículos aéreos não tripulados (drones). O pacote custava 5 milhões de dólares, que não chegaram às arcas de Bout, porque foi detido na Tailândia, extraditado aos Estados Unidos e condenado a 25 anos.

Aparatos letais

Entre o arsenal que as Farc possuem, há três artefatos que as autoridades consideram os mais sofisticados. Primeiro apareceram os fuzis de alta precisão, que causaram múltiplas baixas durante a implementação do Plano Patriota no sul do país, no primeiro mandato do presidente Álvaro Uribe.

O outro é o lança-foguetes anti-tanque portátil RPG7, considerado a artilharia pesada deste grupo. No passado 30 de janeiro foram apreendidas três granadas RPG (munição) deste tipo em Ipiales, Nariño. Por último, está o fuzil Barret .50, cujas balas perfuram blindagens, com um alcance máximo de 2.5 quilômetros e um preço no comércio legal que vai de 11.115.420 de dólares a 20.378.270 de dólares com aditamentos. Em 11/07/2012, o Bloco Ocidental das Farc publicou uma “parte de guerra” no qual se atribuía haver derrubado um avião Super Tucano da Força Aérea em Jambaló, Cauca. No ato morreram os dois tripulantes.

Técnicos em balística indicaram que era possível que uma arma de calibre .50 tombasse um destes aviões quando voava baixo, questão que foi menosprezada pelo Governo. “É improvável que tenha sido derrubado pela guerrilha, esses aviões voam a uma altura onde o armamento que têm é impossível que alcance”, disse o presidente Juan Manuel Santos. Entretanto, no passado 23 de fevereiro a polícia e o exército golpearam a Coluna Teófilo Forero na Operação Danúbio III, nos municípios de La Plata e El Hobo (Huila). Apreenderam um vasto arsenal, incluindo um fuzil Barret .50. Na ação detiveram cinco pessoas, entre elas “Lucho” e “Peludo”, implicados no atentado terrorista com uma bomba lapa contra o ex-ministro Fernando Londoño (2012).

O mercado não se detém

O estudo “Violência, crime e tráfico ilegal de armas na Colômbia”, elaborado pela ONU em 2006, continua sendo uma fonte de consulta válida para estabelecer as características do mercado bélico. Fontes oficiais consultadas por esse diário manifestam que as rotas e métodos se mantiveram estáveis até hoje. Naquela ocasião, a dotação padrão nas Farc era de 2 armas por combatente, e para o ELN de 1 por 1. Atualmente, indicaram analistas da Força Pública, a tendência é de 1.5 armas “em boas condições” por militante.

O número de armas ligeiras na Colômbia (as que um homem pode carregar, como fuzis e pistolas) não está quantificado, porém tendo em conta a relação anterior, e que os membros das Farc estão cifrados pelo governo em 8.000, a dotação insurgente rondaria as 16 mil unidades (algumas obsoletas). A cifra, entretanto, empalidece ante a quantia de encargos que al Kassar e Victor Bout ofereciam, pelo que é pouco confiável. Jorge Giraldo, analista do conflito e decano da Escola de Ciências e Humanidades de EAFIT, opina que nas Farc essa proporção é superior, de 3 armas por cada homem, considerando “a redução histórica de sua tropa e o incremento de seus ingressos por narcotráfico”. No caso do ELN, seria de uma arma por cada 5 homens, “pois sua presença foi mais política e os recursos não são tantos”.

O estudo da ONU precisou que a maioria de compras das Farc são de fuzis russos AK-47, AKM húngaros, FAL suíços, rifles M-16 e munição de calibres 7.62 (proibida pelo DIH) e 5.56 (igual à Força Pública), e o ELN, fuzis FAL, AK-47 e cartuchos 7.62. Este inventário deve se renovar com frequência, por conta das apreensões e a deterioração pelas condições climáticas agrestes e de umidade de nossa topografia. A taxa de perda das Farc seria de 1.300 fuzis ao ano. 80% das armas que adquirem provêm do mercado negro, onde traficantes como Viglakis, al Kassar e Bout eram os preferidos. Estes personagens se suprem de: excedentes de outros países (muitos da antiga URSS) e remanescentes de pós-conflitos (América Central, ex-Iugoslávia e África).

Os outros 20% do material chega do mercado cinza, no qual a transação começa de maneira legal e termina com um destino ilegal. O caso mais emblemático deste modus operandi sucedeu em 1999, quando funcionários do governo peruano compraram 10 mil fuzis à Jordânia, que terminaram em poder das Farc nas selvas de Guainía.

Pelo fato, Vladimiro Montesinos, ex-diretor do Serviço de Inteligência, foi condenado a 20 anos, e Alberto Fujimori foi enviado a julgamento. Outra fonte de armas para a insurgência, de menor importância, é o furto às tropas e empresas de vigilância, e a fabricação de aparatos feitos à mão. Estes últimos são sim significativos quanto aos artefatos explosivos improvisados e minas. A maioria das armas ingressam por via terrestre e fluvial através das fronteiras (Panamá, Venezuela, Brasil, Peru e Equador). Em menor medida, por barcos e pelo ar, o método predileto do “Mercador da Morte”, pelo qual na ocasião constituiu uma empresa chamada Somar Airlines.

Entrega de armas

Segundo a ONU, na história das desmobilizações, de 1990 até agora, a média de entrega de armas é de 1 por cada 2 combatentes. Isto inclui os casos da Nicarágua, El Salvador, Guatemala, Serra Leoa, Libéria, Angola e outros.

Na Colômbia, a média das guerrilhas re-inseridas é de 1 arma por cada 5 combatentes: M-19, EPL, Partido Revolucionário dos Trabalhadores, Movimento Quintín Lame, Comandos Ernesto Rojas, Corrente de Renovação Socialista, Frente Francisco Garnica, Movimento Independente Revolucionário e Exército Revolucionário Guevarista (ERG). No caso das AUC, a relação é de 1 arma por cada dois guerrilheiros (a média internacional). Não obstante, a Polícia denunciou que nem todas as armas foram entregues.

Este é um dos grandes desafios do eventual pós-conflito com as Farc. Como evitar que seu arsenal caia em mãos equivocadas ou obstaculize a negociação no final? Giraldo conta que o modelo de negociação das Farc é o da Irlanda do Norte, no qual não houve entrega de armas. “O problema é saber se aplica-se aqui, onde o arsenal é muito superior ao do IRA”. Acrescenta que “eles também defendem uma honra militar, esperarão até o último minuto para tomar a decisão de desarmamento ou não. Eles não falam às pessoas nas regiões de desmobilização, senão que vão se transformar em um movimento político anti-sistema, e mudar o conceito de combatente pelo de militante”.

Giraldo lembra que em termos de entrega de armas não deve-se falar só de fuzis, pois mais perigosos são os campos minados que ficam à deriva e ainda deixam vítimas, após o fim do conflito, no Vietnã e no Camboja. Gerardo Vega, ex-membro da Comissão de Reparação e Reconciliação, assinala que o importante não é a entrega de armas, senão “que não se usem mais. Desmobilizar-se, mais que uma negociação, é uma decisão de continuar uma vida política sem armas”. No pós-cenário estarão à espreita os mercadores, esperando qual será o inventário para incluir em seu catálogo da guerra.

Cronologia: marco no tráfico de armas da guerrilha:

1990 a 1998: Desmobilizam-se sete grupos guerrilheiros, que somam 4.853 combatentes e entregam 1.445 armas, entre eles o M-19 e o EPL.

1998: Iniciam os diálogos com as Farc no Caguán. Por quatro anos, o grupo se dedica a reabastecer de armas a tropa de 20 mil homens.

1999: Nas selvas da Guainía e em mãos das Farc terminaram muitos dos 10 mil fuzis que o governo do Peru comprou à Jordânia.

2002 e 2003: Em Santa Marta cai o navio Nadya Jay, que vinha da Bulgária com 1.800 armas para as Farc. E no Caquetá, apreendem 28.521 munições.

Tradução: Graça Salgueiro

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