Ano Novo Chinês na TV estatal: histeria comunista à chinesa

31/01/2014 19:15 Atualizado: 31/01/2014 19:16

Enquanto as famílias chinesas se reúnem e enrolam seus bolinhos para o Ano Novo Chinês, as autoridades de propaganda do regime esperam que os televisores estejam fielmente sintonizados em apenas um show: a burlesca e estridente “Gala do Festival da Primavera”.

A gala é um produto da estatal China Central de Televisão (CCTV) e é transmitido nacionalmente desde 1983 (de fato, a CCTV é a única emissora nacional). O show dura mais de quatro horas e pretende ser um marco cultural, misturando humor, canto, celebridades e glamour comunista.

Mas muitos chineses dizem que acham a gala cada vez mais desagradável. É muito política, dizem eles, insistindo maciçamente na linha do Partido Comunista. E há vermelho demais.

As tensões em torno da gala da CCTV parecem elevadas este ano, pois as autoridades comunistas promoveram intensamente sua importância política.

“Este ano está sendo ainda mais enfatizado [pela alta liderança] como um ‘projeto nacional’”, disse Lü Yitao, diretor-executivo que já participou na direção da gala da CCTV por três temporadas, à imprensa oficial China Newsweek. “É a primeira vez que foi ordenado desta forma.”

Lü acrescentou: “O que é um projeto nacional? A abertura dos Jogos Olímpicos é um projeto nacional, certo? Portanto, a gala deve ter esse alto nível de estilo e atenção. Isso mostra também que os líderes estão ávidos por mudanças.” Mas quaisquer que sejam as mudanças, a audiência está confiante de que o papel político da gala permanecerá o mesmo.

China forte, China feliz

Um sentimento comum sobre a gala foi compartilhado pelo internauta Shoulashou Guibenguan, que escreveu: “A gala do Festival da Primavera é apenas para dizer às pessoas o quão forte é a China, o quão feliz é o povo chinês. Contanto que satisfaça essa missão, ela atinge seu objetivo. Se as pessoas gostam ou não, isso não é importante!”

No entanto, a contradição entre as imagens paradisíacas retratadas e a realidade na China pode perturbar algumas pessoas. “A direção da gala está equivocada, especialmente nos últimos cinco anos”, disse Hong Minsheng, um ex- vice-diretor da CCTV, numa entrevista na imprensa chinesa. “Muitos chineses estão vivendo em terrível amargura, mas a ‘Gala do Festival da Primavera’ ainda canta louvores e submissão ao Partido Comunista”, disse ele.

Hong comentou ainda que desde 1992 a CCTV teve de executar cinco vezes cada performance da gala para verificação e adaptação dos censores, antes de ser colocada na lista oficial, para garantir que não houvesse nada de constrangedor para o Partido Comunista. O sistema bizantino de censura também significa que as celebridades de Hong Kong e Taiwan precisam receber aprovação do mais alto escalão e ter suas performances minuciosamente examinadas antes que possam aparecer.

A gala costumava ser apenas uma festa noturna, em que um grupo de artistas se reunia, disse Hong, mas agora é “completamente irrelevante para a arte”.

‘Dançando com grilhões’

Uma das mudanças alardeadas sobre a gala deste ano foi a indicação de Feng Xiaogang como diretor. Feng é uma celebridade na China, conhecido por dirigir comédias e dramas de época.

Como o primeiro diretor de cinema a assumir a gala, e por ser relativamente independente, Feng teve muitos momentos difíceis lutando com o sistema complexo e confuso de censura. Seu trabalho é equilibrar o que ele acha que o povo quer com o que os líderes do Partido Comunista determinam.

“Eu posso dizer que absolutamente não faria isso de novo em toda a minha vida”, disse Feng em entrevista à CCTV em 19 de janeiro. “Absolutamente impossível.”

Um diretor-associado da gala deste ano, Yu Lei, disse na mesma entrevista que Feng está acostumado a fazer filmes como lhe agrada e só no fim submetê-los aos censores.

Mas dirigir a gala é totalmente diferente, porque os líderes do Partido intervêm diretamente e modificam a direção constantemente, disse Yu. “Eles dirão ‘não’ a você quando você estiver no processo de criar algo. É preciso nervos de aço para lidar com isso.”

Zhang Heping, um membro da equipe de planejamento da gala, ofereceu uma metáfora bem ilustrativa: “É como dançar com grilhões”, disse Zhang. “Não é sobre o que você quer, mas sobre o que eles lhe dizem para fazer.”

Performances assassinadas

Várias performances este ano, que seriam atrativas à audiência, foram engavetadas, porque foram consideradas politicamente sensíveis.

Uma era relacionada com Cui Jian, o pai da música rock na China e famoso por seu apoio aos estudantes durante o movimento democrático na Praça da Paz Celestial em 1989, que terminou numa repressão militar sangrenta. Cui tocou uma vez a balada “Nada pelo meu nome” na Praça da Paz Celestial para mostrar seu apoio aos estudantes.

A música foi julgada imprópria para a gala e Cui rejeitou a sugestão de mudar a letra ou tocar outra música, segundo seu agente.

Uma sátira chamada “Associação estudantil”, destinada a zombar de funcionários corruptos que são convidados para jantares pródigos, também foi cortada pelos censores. Esta forma de corrupção é comum na China e amplamente divulgada na mídia, mas parodiar a corrupção no Partido Comunista não combina com o grande plano elaborado para a “Gala do Festival da Primavera”.

Um resultado do recorte da censura é que há poucas performances faladas este ano – apenas 5 de um programa de 42 apresentações. A maioria inclui músicas, esquetes ou entretenimento sem diálogo. É um novo recorde em 30 anos da gala.

A CCTV tentou trazer celebridades estrangeiras para participar e despertar o interesse do público, incluindo a atriz francesa Sophie Marceau e o jovem ídolo pop coreano Lee Min-ho, que cantará este ano. No ano passado, a diva americana Celine Dion cantou a melodia chinesa açucarada “Flor de Jasmim”.

Apesar dos melhores esforços das autoridades, o clima de opinião online é amplamente negativo sobre o evento. Inúmeros comentários de internautas se queixam de que a coisa toda é “lavagem cerebral”, “arruína a cultura chinesa” e retrata “apenas uma combinação exótica indescritível”.

“A gala mostra o lixo cultural, porque [as autoridades] forçam a cultura e a arte a seguirem sua vontade e interesses”, escreveu o internauta Zuojia Caojunshu. “Num país normal, o maior objetivo de uma gala é entreter. E não deve estar relacionado à doutrinação forçada e material político.”