Análise sobre dois polos opostos do libertarianismo: brutalista e humanitário

17/03/2014 14:28 Atualizado: 18/03/2014 14:28

Por que preferir a liberdade humana em vez de uma ordem social controlada e regulada por alguns poucos poderosos? Para fornecer a resposta, eu diria que os libertários podem ser, de uma forma geral, divididos em dois campos: humanitários e brutalistas.

Os humanitários se baseiam nos seguintes argumentos. A liberdade permite e estimula uma pacífica cooperação humana. Ela inspira a criatividade e todos os subsequentes benefícios que isso gera para terceiros. Ela restringe e desestimula a violência. Ela permite a acumulação de capital e a prosperidade. Ela protege os direitos humanos de todos os indivíduos contra violações e usurpações. Ela permite que associações humanas voluntárias de todos os tipos possam se desenvolver segundo seus próprios termos. Ela estimula uma maior convivência social e recompensa àquelas pessoas que querem se dar bem com as outras, ao mesmo tempo em que restringe aquelas que só querem causar o mal. Ela leva a um mundo no qual as pessoas são valorizadas como um fim em si mesmas e não vistas como uma mera forragem em meio a todo um aparato central.

Tanto a história quanto a experiência nos mostram que é assim. Todos esses são excelentes motivos para se desejar a liberdade. Mas eles não são os únicos motivos pelos quais as pessoas defendem a liberdade. Há um segmento entre os autoproclamados libertários — doravante descritos como brutalistas — que consideram tudo o que foi descrito acima como sendo bastante enfadonho, vago e excessivamente humanitário.

Para eles, o que é interessante a respeito da liberdade é o fato de ela permitir que pessoas manifestem suas preferências individuais, formem tribos homogêneas, coloquem seus preconceitos em ação, marginalizem pessoas tomando por base padrões “politicamente incorretos”, odeiem profundamente determinadas pessoas (desde que nenhuma violência seja utilizada), sejam abertamente racistas e sexistas, sejam excludentes e no geral descontentes com a modernidade, e rejeitem padrões civis de valores e etiquetas, preferindo a adoção de normas antissociais.

Estes dois impulsos são radicalmente distintos. O primeiro valoriza toda a paz social que surge junto com a liberdade, ao passo que o último valoriza a liberdade de rejeitar a cooperação, preferindo manifestar preconceitos figadais. O primeiro quer reduzir o papel do poder e do privilégio no mundo, ao passo que o último quer a liberdade de reivindicar poder e privilégio dentro das estritas delimitações dos direitos de propriedade e a liberdade de se afastar de tudo e de todos.

Só para deixar claro, a liberdade realmente permite a manifestação tanto da perspectiva humanitária quanto da brutalista, por mais implausível que isto seja. A liberdade é ampla, abrangente e não impõe nenhum fim social específico como sendo o único arranjo aceitável. Por outro lado, ambas as manifestações constituem maneiras extremamente distintas de se enxergar o mundo — a primeira, liberal no sentido clássico; a última, antiliberal em todos os sentidos —, e é bom ter isso em mente antes de você, como libertário, se descobrir aliado a pessoas que ainda não entenderam o cerne da ideia da liberdade.

O humanitarismo nós compreendemos. Ele busca o bem-estar da pessoa humana e o desenvolvimento da sociedade em toda a sua complexidade. O humanitarismo libertário entende que a melhor maneira de se alcançar esses objetivos é por meio do próprio sistema social, que se auto-organiza quando se vê livre dos controles externos exercidos pelas violentas intervenções do Estado. O objetivo é essencialmente benevolente, e o meio pelo qual ele é alcançado valoriza a paz social, a liberdade de associação, as trocas voluntárias e mutuamente benéficas, o desenvolvimento orgânico de instituições, e a beleza da vida.

Mas o que seria o brutalismo? O termo está em grande parte associado a um estilo arquitetônico popular dos anos 1950 até os anos 70, o qual enfatizava o uso de grandes estruturas de concreto, sem grandes preocupações com estilo e adornos. A deselegância era seu principal ímpeto e toda a sua fonte de orgulho. O brutalismo passava a mensagem da despretensão e da crua natureza prática da utilização de um prédio. Uma construção deveria ser forte, não bonita; agressiva, não detalhista; imponente, não sutil. Na arquitetura, o brutalismo foi uma afetação. Uma afetação que nasceu de uma teoria retirada de contexto.

Era um estilo adotado com uma ciente precisão. Acreditava estar nos obrigando a olhar para realidades sem adornos, para um aparato destituído de distrações, tudo com o intuito de transmitir uma mensagem didática. Esta mensagem não era somente estética, mas também ética: era uma questão de princípio rejeitar a beleza. Embelezar significa fazer concessões, distrair, arruinar a pureza da causa. Desta maneira, o brutalismo rejeitava a necessidade do apelo comercial, e descartava completamente questões como apresentação e comercialização; tais questões, na ótica brutalista, desviavam nossa atenção do seu núcleo radical.

O brutalismo declarava que um prédio não deve ser nem mais nem menos do que supostamente deveria ser para cumprir sua função. O brutalismo defendia o direito de ser feio, e foi exatamente por esse motivo que esse estilo foi extremamente popular entre os governos ao redor do mundo. E é também por este motivo que, ao redor do mundo, as formas brutalistas são atualmente consideradas horríveis.

Olhamos para o passado e nos perguntamos como surgiram essas monstruosidades, e nos surpreendemos ao descobrir que elas surgiram de uma teoria que, por princípios, rejeitava a beleza, a apresentação e a ornamentação. Os arquitetos imaginavam estar nos mostrando algo que, em outras circunstâncias, relutaríamos em aceitar. No entanto, só é possível apreciar os resultados do brutalismo se você já houver aceitado sua teoria e se convencido de sua praticidade. Caso contrário, sem a ideologia fundamentalista e extremista como sustentação, os prédios parecem apenas coisas aterrorizantes e ameaçadoras.

Por analogia, o que seria o brutalismo ideológico? Trata-se de uma teoria completamente despida, a qual se preocupa exclusivamente com suas partes mais cruas e mais fundamentais, e que se concentra apenas na aplicação destas partes. Trata-se de uma ideologia que testa os limites da ideia ao descartar toda a elegância, todo o refinamento, toda a delicadeza, toda a decência, todos os enfeites. Tal teoria não se importa com a causa maior, que é a civilidade e a beleza dos resultados. Ela se interessa somente pela pura funcionalidade das partes. Ela desafia qualquer um a questionar a aparência geral do aparato ideológico, e abertamente despreza quem o faz, o qual passa a ser considerado alguém insuficientemente entendido do núcleo da teoria, sendo que tal teoria é imposta sem contexto e sem nenhuma consideração estética.

É claro que nem todos os argumentos em prol de princípios crus e de análises puras são inerentemente brutalistas; o cerne do brutalismo é o fato de que temos de reduzir para alcançar as raízes, de que temos de nos deparar com a verdade desagradável, de que devemos nos chocar e, em algumas ocasiões, devemos chocar os outros com as implicações aparentemente implausíveis ou desconfortáveis de uma ideia. O brutalismo vai muito além: a ideia é a de que o argumento deve ser o mais simplista possível, e que elaborá-lo, habilitá-lo, adorná-lo, deixá-lo com nuanças, admitir incertezas ou amplificá-lo para além de afirmações arenosas equivale a um tipo de traição, de concessão ou de corrupção da pureza. O brutalismo é implacável, inflexível e descarado em sua recusa de abandonar seus mais primitivos postulados.

O brutalismo pode ser visto sob vários disfarces ideológicos. O bolchevismo e o nazismo são exemplos óbvios: classe e raça se tornam a única métrica a balizar as políticas; quaisquer outras considerações são excluídas. Nas democracias modernas, as posições partidárias tendem ao brutalismo na medida em que demostram que o controle partidário é a única preocupação relevante. O fundamentalismo religioso é também outra forma muito óbvia de brutalismo.

No mundo libertário, no entanto, o brutalismo tem suas raízes na simples teoria de que os indivíduos têm o direito de viver de acordo com seus próprios valores, quaisquer que sejam. A verdade central está lá e é incontestável, mas a aplicação é feita de forma crua. Assim, os brutalistas declaram o direito de serem racistas, o direito de serem misóginos, o direito de odiarem judeus ou estrangeiros, o direito de ignorar padrões civis de sociabilidade, o direito de serem incivilizados, de serem rudes e grosseiros. Tudo é permissível e até mesmo meritório, pois aceitar o que é terrível pode constituir um tipo de teste. Afinal, o que é a liberdade sem o direito de se ser bronco?

Esses tipos de argumentos fazem com que os libertários humanitários se sintam profundamente desconfortáveis, pois, embora tais argumentos sejam estritamente verdadeiros, eles desconsideram o ponto principal da liberdade humana: não devemos dividir ainda mais o mundo e não torná-lo ainda mais infeliz, mas sim estimular e possibilitar o progresso da humanidade com paz e prosperidade.

Assim como queremos que a arquitetura seja agradável aos olhos e reflita o drama e a elegância do ideal humano, uma teoria sobre a ordem social também deve ser capaz de fornecer uma estrutura adequada para que a vida seja bem vivida e para que todos os tipos de associações voluntárias levem ao crescimento de seus membros.

Os brutalistas estão tecnicamente corretos quanto ao fato de que a liberdade também protege o direito de se ser um completo ignorante e o direito de odiar, mas esses impulsos não são oriundos da longa história das ideias liberais. Por exemplo, em questões de raça e sexo, a liberação das mulheres e das minorias étnicas do domínio arbitrário foi uma grande conquista dessa tradição. Continuar afirmando o direito de voltar no tempo nestas questões é uma postura que passa a impressão de que a ideologia foi despida de seu contexto histórico, como se essas vitórias da dignidade humana não tivessem absolutamente nada a ver com as necessidades ideológicas atuais.

O brutalismo é mais do que uma versão simplificada, despojada, antimoderna e destripada do liberalismo original. É também um estilo de argumentação e de abordagem retórica. Assim como na arquitetura, ele rejeita o marketing, o espírito comercial, e a ideia de “vender” uma visão de mundo. A liberdade deve ser aceita ou rejeitada tendo por base apenas a sua forma mais bruta. Assim, ele é muito rápido em atacar, condenar e declarar sua vitória. Ele enxerga meios-termos e concessões em todos os cantos. Ela adora desmascarar e expor esses pecados. Ele não tem nenhuma paciência para sutilezas expositivas, e muito menos para as nuances das circunstâncias de tempo e local. O brutalismo vê apenas verdades cruas, e se agarra a ela como se fosse a única verdade, excluindo todas as outras verdades.

O brutalismo rejeita a sutileza e não enxerga exceções circunstanciais à teoria universal. A teoria é aplicável em todos os locais, a qualquer época, em qualquer cultura. Não há espaço para modificações ou até mesmo para a descoberta de novas informações que possam modificar a forma com que a teoria seja aplicada. O brutalismo é um sistema de pensamento fechado no qual todas as informações relevantes já são conhecidas e a maneira pela qual a teoria é aplicada é tida como um mero dado do aparato teórico. Até mesmo áreas difíceis, como leis familiares, restituições criminais, direitos sobre ideias, responsabilidade por invasões e outras áreas sujeitas à tradicional análise jurisprudencial se tornam parte de um aparato apriorístico que não admite exceções ou emendas.

E dado que o brutalismo é um impulso mais remoto no mundo libertário — os jovens não se interessam mais por essa abordagem —, ele se comporta da maneira típica a grupos seriamente marginalizados. Ao afirmar o direito ao racismo e ao discurso — e até mesmo justificar o mérito de tal postura, esta corrente já está excluída da grande discussão pública. As únicas pessoas que de fato escutam argumentos brutalistas — que são intencionalmente pouco convincentes — são outros libertários. Por esse motivo, o brutalismo se encaminha cada vez mais em direção ao sectarismo extremo: atacar os humanitários que tentam embelezar sua mensagem se torna uma ocupação integral.

Com essa sectarização, os brutalistas evidentemente afirmam que são os únicos verdadeiros adeptos da liberdade, pois somente eles têm fibra para levar a lógica libertária ao seu extremo e aceitar seus resultados. Porém, o que ocorre aqui não é coragem ou rigor intelectual. A ideia deles sobre o que significam as ideias libertárias é reducionista, truncada, irrefletida, simplista e não-corrigida pelo avançar da experiência humana, ignorando o grande contexto histórico e social no qual a liberdade vive.

Digamos que você viva numa cidade tomada por um grupo fundamentalista que exclua todos aqueles que não sejam adeptos de sua fé, obrigue as mulheres a usarem roupas do tipo burca, imponha um código legal teocrático e marginalize gays e lésbicas. Você pode até dizer que, neste caso, as pessoas são parte voluntária desse arranjo; porém, mesmo assim, não há qualquer liberalismo presente neste arranjo social. Os brutalistas estarão nas trincheiras defendendo essa microtirania, e sempre utilizando como argumentos a descentralização, os direitos de propriedade e o direito de discriminar e de excluir — ignorando completamente a realidade mais profunda, na qual as aspirações individuais em prol de uma vida mais plena e mais livre são negadas diariamente.

No que mais, o brutalista acredita já conhecer os resultados da liberdade humana, e esses resultados frequentemente estão de acordo com os impulsos que mesclaram Estado e religião já testemunhados em épocas passadas. Afinal, para eles, a liberdade significa simplesmente a liberação de todos os impulsos mais básicos da natureza humana, os quais eles acreditam terem sido suprimidos pelo Estado moderno: o desejo de pertencer a uma homogeneidade racial e religiosa, a permanência moral do patriarcado, a repulsa à homossexualidade e assim por diante. O que a maioria das pessoas considera avanços modernos contra os preconceitos, os brutalistas creem ser exceções impostas ao longo de toda a história dos instintos tribais e religiosos da humanidade.

É claro que o brutalista que descrevi aqui é um tipo ideal, e provavelmente sua personificação não será encontrada em nenhum pensador específico. Mas o impulso brutalista está em evidência em todos os cantos, principalmente nas mídias sociais. Trata-se de uma tendência de pensamento com posições e propensões previsíveis. Trata-se de uma grande fonte para as correntes racistas, sexistas, homofóbicas e antissemitas que existem dentro do mundo libertário — correntes essas que, ao mesmo tempo em que negam a veracidade desta frase, defendem com idêntica paixão o direito de os indivíduos terem essas visões e agirem de acordo com elas. Afinal, dizem os brutalistas, o que seria a liberdade humana sem o direito de se comportar de maneiras que testem nossas mais preciosas sensibilidades — e até mesmo a civilização?

No final, tudo se resume à motivação fundamental que dá sustento à própria liberdade. Qual é o seu propósito universal? Qual é sua contribuição histórica dominante? Qual é o seu futuro? É aqui que os humanitários estão fundamentalmente em desacordo com os brutalistas.

É verdade que não devemos ignorar o núcleo da pura teoria da liberdade, e jamais devemos nos esquivar de suas implicações mais difíceis. Ao mesmo tempo, a história da liberdade e seu futuro não se resumem a apenas declarações de direitos; são também sobre elegância, estética, beleza e complexidade; sobre como servir às outras pessoas, sobre a comunidade, sobre o gradual surgimento de normas culturais, e sobre o desenvolvimento espontâneo de amplas ordens de relacionamentos comerciais e pessoais. A liberdade é o que dá vida à imaginação humana, e é ela quem permite que o amor se amplifique e se estenda desde nossos desejos mais benevolentes e elevados.

Por outro lado, uma ideologia roubada de seus adornos pode se tornar algo francamente desagradável e feio, como uma grande monstruosidade de concreto construída décadas atrás e imposta sobre uma paisagem urbana, constrangedora a todos, e que hoje está apenas à espera de sua demolição.

O libertarianismo será brutalista ou humanitário? Você tem de decidir.

Jeffrey Tucker é presidente da Laissez-Faire Books e consultor editorial do Mises.org. É também autor dos livros “It’s a Jetsons World: Private Miracles and Public Crimes” e “Bourbon for Breakfast: Living Outside the Statist Quo

Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil