América Latina: anti-EUA nas palavras, não nos atos

30/10/2013 11:55 Atualizado: 05/11/2013 14:50

A blogosfera latino-americana prendeu a respiração quando o avião do presidente boliviano Evo Morales foi forçado a pousar em Viena em julho. Enquanto as autoridades europeias procuravam a bordo pelo ex-contratado da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos EUA, Edward Snowden, contas do Twitter dos presidentes sul-americanos explodiram com ressentimento.

O continente denunciou os Estados Unidos por ampliar sua supremacia hemisférica para a Europa, balbuciou palavras como “colonialismo” e “imperialismo” e afirmou que o incidente violou a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. A presidente argentina Cristina Kirchner qualificou o incidente de “não só humilhante para uma nação irmã, mas também para todo o continente sul-americano”.

A fúria continuou com os relatos de que a NSA teria espionado a Petrobras – o que a presidente Dilma Rousseff descreveu como “espionagem industrial” – e monitorado as comunicações telefônicas e da internet de Dilma Rousseff e do presidente mexicano Enrique Peña Nieto, quando este era um candidato. Rousseff adiou uma visita de Estado a Washington durante investigações e enquanto o presidente Barack Obama esperava nos bastidores da Assembleia Geral da ONU por sua vez no pódio, ela criticou os EUA por “violarem o direito internacional”.

Isto pode ser um ponto de mudança nas relações dos EUA com seus vizinhos do sul. Enquanto o sentimento antiamericano nas ruas, resultado de uma longa história de dominação, é real, a realidade é que os EUA e a América Latina estão unidos pelo quadril, econômica e demograficamente. Dados de comércio, investimento e imigração revelam relações crescentes e interdependência.

História turbulenta

Rousseff ter suspendido sua viagem a Washington é apenas um episódio de uma longa história de relações turbulentas com poderes externos. Simón Bolívar, o “Libertador do Sul”, propôs primeiramente combater o colonialismo europeu na América do Sul em 1826. Durante a Guerra Fria, a política de contenção dos EUA levou a intervenções militares na América Central e no Caribe e apoiou ditaduras de direita no Cone Sul. Segundo a Anistia Internacional, centenas de milhares foram torturados, exilados ou “desapareceram” sob as ordens de juntas militares apoiadas pelos EUA no Chile, Argentina e Guatemala.

O medo dos EUA do comunismo se espalhar na região foi controlado por meio da Organização dos Estados Americanos (OEA). Após os ataques de 11 de setembro em Nova York e Washington, a Secretaria Multidimensional foi criada na OEA para lidar com ameaças transnacionais como o terrorismo e o crime organizado. Centenas de milhares de pessoas perderam suas vidas na Colômbia, México e Honduras com a ascensão do crime organizado na região.

Até sua morte em março de 2013, o presidente venezuelano Hugo Chávez liderou um grupo de oito nações sob a Aliança Bolivariana das Américas (ALBA), num movimento anti-imperialista que carrega a bandeira do socialismo do século 21. A ALBA, liderada por Cuba e Venezuela, contra a Área de Livre Comércio das Américas, liderada pelos Estados Unidos, nasceu para contrariar o domínio dos EUA na região.

Logo após as revelações sobre a NSA emergirem, os governos de esquerda na América do Sul – Bolívia, Nicarágua e Venezuela – fizeram manchetes internacionais, oferecendo asilo a Snowden. A situação do delator é semelhante à do fundador do WikiLeaks, Julian Assange, que se refugiou na embaixada do Equador em Londres desde junho de 2012.

Em 20 de julho, menos de um mês após o início do caso Snowden, o presidente venezuelano Nicolás Maduro aproveitou a oportunidade para concluir conversas que começaram em junho com o secretário de Estado norte-americano John Kerry, afirmando: “Minha política é de tolerância zero à agressão estrangeira contra a Venezuela.” Conversações para substituir um embaixador dos EUA em Caracas foram abandonadas mais uma vez.

Na América Latina, países da ALBA atuam como um eixo do sentimento antiamericano. Em fevereiro de 2013, o ministro das Relações Exteriores do Equador, Ricardo Patiño, chamou o Conselho Interamericano de Defesa da OEA de “inútil”, sugerindo que era apenas mais um braço da influência dos EUA na região. Um mês depois, o presidente equatoriano Rafael Correa afirmou no discurso inaugural da 22ª Cimeira da ALBA que seus membros “devem criar um escudo contra a exploração, um escudo contra o neocolonialismo”.

Nações da ALBA criaram sua própria Escola de Soberania e Defesa na Bolívia para manter a intervenção imperialista dos EUA em cheque. Um argumento principal de segurança é que o tráfico de drogas é um problema para os Estados Unidos e não necessariamente uma questão política para os países sul-americanos.

Ações não acompanham retórica

Poderia se pensar que os fortes e constantes fluxos de comércio, ajuda e cooperação de segurança entre a América Latina e os EUA minguariam depois de tanta tensão. No entanto, o Departamento de Estatísticas dos EUA informa que o comércio permanece estável por hora, especialmente para os produtores de petróleo como Venezuela e Bolívia. O sentimento antiamericano na região parece ser puramente retórico, tendo pouco impacto nas relações comerciais com os EUA.

A retórica antiamericana nos países da ALBA não os impediu de listar os EUA entre seus principais parceiros comerciais. Até 2012, os EUA foram a principal fonte de importação da Venezuela, Nicarágua, Equador e Honduras. Particularmente notável é que 31,2% das importações da Venezuela e 28% das do Equador sejam originárias dos EUA. Adicionando a lista, os EUA são a quarta maior fonte de importações da Bolívia, responsável por 10% de suas importações, e a segunda fonte da Argentina depois do Brasil.

Os Estados Unidos recebem a maior porcentagem de exportações latino-americanas da Venezuela, Equador, Nicarágua e Honduras. No caso da Bolívia, ele cai para o segundo lugar, depois do Brasil. Esses fluxos significativos de mercadorias e capitais não pararão subitamente, não importa quantos países obriguem o avião presidencial boliviano a aterrissar por algumas horas.

Mudanças nos EUA

Demográfica e economicamente, os EUA estão mudando de forma a tornar improvável qualquer impasse com parceiros latino-americanos. Segundo um relatório recente da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe sobre investimento estrangeiro na região, os EUA ainda são responsáveis por 58,5% do investimento estrangeiro. Ao mesmo tempo, os 53 milhões de pessoas de origem hispânica e latina nos EUA são responsáveis por 17% da sua população, a maior minoria étnica no país.

Da mesma forma, conforme relatado pelo New York Times, a migração da América Latina para os Estados Unidos atingiu o equilíbrio com o número de recém-chegados quase equivalente ao número de pessoas que retornam para casa. Norte-americanos também estão escolhendo países como México, Belize, Costa Rica e Nicarágua para se aposentar, enquanto viagens recentes ao México e Chile pelo presidente e vice-presidente dos EUA enfatizam trocas educacionais.

A América do Sul manifesta sua indignação por meio da diplomacia. Considere-se que, após Morales ser autorizado a voltar para La Paz, o estrondo diplomático cresceu enquanto membros do Mercosul convocaram de volta seus embaixadores nos países que negaram a utilização de seu espaço aéreo ao presidente boliviano. O Equador se juntou a eles quatro dias depois, momento em que os embaixadores da Venezuela também foram oficialmente removidos da Espanha, França, Portugal e Itália. Um pedido de desculpas foi emitido em 25 de julho e os embaixadores da Bolívia, Venezuela e Equador foram reintegrados a seus escritórios em Paris, Roma, Madrid e Lisboa dois dias depois.

Pode haver preocupações mais profundas sobre os relatórios dos EUA estarem monitorando comunicações de presidentes e indústrias estratégicas. O Brasil é a sexta maior economia do mundo e Dilma Rousseff poderá usar essas revelações embaraçosas para barganhar com os EUA sobre comércio, regulação da internet e outras prioridades. Com a Copa do Mundo e as Olimpíadas chegando, o Brasil provavelmente usará a situação como capital político muito necessário domesticamente, em vez de tentar qualquer mudança nas relações com os EUA. Apesar do barulho feito na ONU, Rousseff não pode correr o risco de um conflito internacional em meio ao crescente descontentamento com suas ações em matéria de política doméstica.

O comércio ultrapassa a ideologia. Por fim, os líderes de esquerda, como Maduro e Morales precisam dos negócios norte-americanos em suas economias e a mais veemente retórica anti-imperialista é ofuscada pelo pragmatismo econômico. O Equador está numa posição ainda mais crítica, dependente do dólar dos EUA em sua economia, o que significa que ele não pode danificar suas relações com os EUA. Alarde ideológico pode fazer manchetes, mas não interferirá nos grandes fluxos de comércio da América Latina com a economia mais poderosa do mundo.

Luisa Parraguez é professora e pesquisadora do Departamento de Estudos Globais no Campus da Cidade do México do ‘Tecnológico de Monterrey’. Francisco Garcia Gonzalez é coordenador de pesquisa e pós-graduação na ‘Auditoría Superior de la Federación’ do ‘Tecnológico de Monterrey’. Joskua Tadeo é estudante de Relações Internacionais e assistente de pesquisa no ‘Tecnológico de Monterrey’. Copyright © 2013 Centro ‘Whitney & Betty MacMillan’ de Estudos Internacionais e Regionais da Universidade de Yale