A maneira pela qual os editores de O Globo resolveram tratar do arrastão promovido pela polícia após as depredações que se seguiram à passeata dos professores em greve no Dia do Mestre, com uma capa que nenhuma pessoa de bom senso poderia admitir, provocou imediata reação na internet e uma enxurrada de e-mails de protesto à Redação do jornal, juntamente com uma avalanche de pedidos de cancelamento de assinatura articulada virtualmente (ver aqui). A maior parte reproduzia um texto padrão, o que indicava a adesão a um movimento organizado, mas havia também muitas manifestações espontâneas.
Contrariando seus princípios editoriais – “o público será sempre tratado com respeito, consideração e cortesia, em todas as formas de interação com os jornalistas e seus veículos” –, o jornal optou por bloquear essas mensagens. A decisão repercutiu negativamente na Redação: vários jornalistas contestaram a medida, defendendo a importância de ter acesso irrestrito à manifestação do público, fosse ou não leitor regular do jornal.
A situação piorou com a intervenção do articulista Ilimar Franco, de Brasília, titular da coluna “Panorama Político”, que afirmou: “Quem escreve para jornal é psicopata ou desocupado”. Tamanha desqualificação provocou mais contestações internas, sob o argumento elementar de que os leitores precisam ser ouvidos. Se não por um princípio ético, pelo menos por uma questão de sobrevivência, ainda mais nesses tempos de interatividade virtual, que impõem uma nova forma de se relacionar com o público.
Imagine-se como se sentirão, a partir de agora, os leitores que enviam suas cartas à Redação. Serão psicopatas ou apenas pessoas que não têm mais o que fazer?
Uma capa vergonhosa
Essa história vazou na internet no domingo (20/10), no blog “Coleguinha, uni-vos” (ver aqui). A capa em questão é a da edição de quinta-feira (17/10), que alia o absurdo do prejulgamento – também obviamente contrário aos princípios editoriais – a uma canhestra tentativa de ridicularizar, estigmatizar e criminalizar os manifestantes presos na noite do dia 15. A vinheta, como tantas vezes acontece, reproduz clássicos da literatura: “Crime e castigo”.
Houve crime? Parece que não, considerando que a maioria dos presos não demoraria muito a ser solta. Pelo mesmo motivo, o “castigo” foi abusivo. A manchete, “Lei mais dura leva 70 vândalos para presídios”, escancara o prejulgamento: o jornal pode optar por chamar de vândalo quem depreda bens privados e públicos – por mais que aja de maneira bem distinta quando as mesmas cenas ocorrem em outros países: jovens que enfrentaram a polícia em Roma na semana passada foram chamados de “descontentes” (ver aqui) –, mas não pode qualificar assim as pessoas que estavam sentadas pacificamente na escadaria da Câmara dos Vereadores, e que foram arbitrariamente levadas pela polícia.
Para completar, o quadro abaixo da manchete, com a vinheta “Sem máscaras”, seleciona três personagens do protesto e os ridiculariza e criminaliza. Um deles nem sequer estava entre os presos: era o rapaz “engajado e baleado” que, devido aos ferimentos, estava hospitalizado. A forma de exposição dos rostos lembra a dos cartazes dos “terroristas” que o governo da ditadura mandava espalhar, nos anos 1970.
Eles não sabem o que fazem?
Não foi casual, portanto, que os protestos nas redes sociais tenham lembrado e ironizado o recente mea culpa do jornal sobre o apoio dado ao regime – um mea culpa envergonhado e vacilante, como se criticou fartamente neste Observatório. Pois o problema principal nem foi o prejulgamento dos manifestantes: afinal, por antiéticos que sejam, prejulgamentos se sucedem, mais ou menos explícitos, em várias coberturas jornalísticas e, às vezes, de tão naturalizados, quase não são percebidos. O problema grave foi apoiar uma ação flagrantemente ilegal da polícia, quando a única atitude possível seria denunciar esse abuso, em nome dos valores democráticos que o jornal diz defender.
Daí a oportuna montagem que circulou na internet – com todas as ressalvas à fonte que a produziu – associando a capa daquele dia a uma edição dos tempos da ditadura, com a manchete sobre o tratamento a ser dado aos “arruaceiros” de 1968 (ver aqui).
Bem a propósito, no mesmo dia 17/10, artigo do advogado Pierpaolo Bottini na Folha de S.Paulo (ver aqui) apontava a necessidade e a urgência de se combater a violência dos Black Blocs, mas deixava claro que o excesso dos manifestantes era menos perigoso que o arbítrio do poder público.
Não é possível que editores experientes ignorem isto. Amparar uma arbitrariedade daquele tamanho significa ajudar a preparar terreno para a legitimação de medidas de exceção, para depois, talvez, quem sabe, num futuro incerto, novamente oferecer desculpas pela cumplicidade. Como se eles não soubessem o que fazem.
É curioso que, no início do mês, o mesmo jornal tenha destacado a tentativa de policiais de plantar provas contra um manifestante, embora essa cena possa facilmente ser recortada como um caso isolado de “excesso”, a ser punido exemplarmente, deixando intacta a estrutura da corporação. O mais notável, entretanto, é que o flagrante foi capturado na noite do dia 30/9 e só veio a público três dias depois. A evidente relevância das imagens esbarrava nos interesses defendidos pela cúpula do jornal Quanta saliva não precisou ser gasta para convencer os editores do óbvio?
A alienação do aquário
Episódios como este, associados ao mal-estar criado na Redação com o bloqueio da manifestação dos leitores – e, antes, com a própria edição daquela capa –, são reveladores dos conflitos presentes numa grande empresa jornalística e deveriam deixar claro o quanto é equivocada – para dizer o mínimo – a atitude de militantes e midiativistas de hostilizar os jornalistas que saem à rua para fazer seu trabalho: os mentores da manipulação estão ao abrigo das agressões, instalados em seus “aquários”.
No entanto, a distância das ruas – e, por extensão, do público – tende a produzir uma alienação que pode ser fatal para a sobrevivência da empresa. O recente comentário de Mauro Malin em seu perfil no Facebook é muito preciso quanto a isso:
“As pessoas que dirigem hoje a redação de O Globo e o estão reduzindo a sucursal da assessoria de imprensa do Palácio Guanabara e adjacências, que tentam criminalizar bisonhamente manifestantes e esvaziar as ruas, vocalizando o estado de espírito da velha e da nova direita do país, parecem não levar em conta que uma parcela de seus leitores é constituída por órfãos do Jornal do Brasil, pessoas avessas a essa retórica (que a TV Globo e a Globo News, registre-se, não praticam) e às correspondentes manobras políticas infames. Órfãos cronologicamente literais, ou seja, pessoas que têm idade para ter sido leitores do JB, e órfãos em sentido cultural, ideológico e político, que chegaram depois. (…) Mas é mesmo aquela velha história: o tigre não pode mudar suas listras. O velho Globo de Gustavo Corção e Eugênio Gudin paira como um espectro sobre os cérebros, bem menos privilegiados, dos atuais combatentes intelectuais da direita. A serviço de líderes políticos cuja ideologia é difícil discernir, como Sérgio Cabral Filho, Eduardo Paes e seus parceiros(as) planaltinos, salvo no que diz respeito a ‘se dar bem’ – refiro-me, claro, a agarrar-se ao poder que conquistaram.”
O comportamento crítico de jornalistas nesse episódio que transbordou para as redes sociais pode sugerir a esperança de que algo mude na dinâmica da Redação. Mesmo porque, a prosseguir na linha adotada, o jornal tende a restringir seu público aos setores mais conservadores da sociedade. Do ponto de vista mercadológico, não parece uma boa aposta.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)
Esse artigo foi originalmente publicado em Observatório da Imprensa