Distribuir mosquiteiros – aquela rede fina que fica em volta da cama para impedir que mosquitos entrem – tratados com inseticida foi um dos grandes breakthroughs no combate à malária na África. A malária tira todo ano mais de 500 mil vidas no continente, e o combate a ela é custoso. Transmitida por mosquito, a distribuição de mosquiteiros a partir de fins dos anos 90 mostrou-se uma solução barata, simples de usar e bastante eficaz; não erradica a doença, mas diminui significativamente o risco de contágio se bem utilizado.
O avanço gerou uma verdadeira febre de ativismo em volta dele. Celebridades como Beckham, Cheryl Cole (que acabou por contrair malária) e muitos outros participaram de campanhas para aumentar doações para a distribuição das redes. Empresas, ONGs e governos – africanos e do resto do mundo – entraram com tudo nessa onda, de modo que o mosquiteiro distribuído gratuitamente já foi incorporado à cultura de muitas comunidades africanas.
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A rede de proteção já adquiriu vários usos que passam longe do que previam os doadores dos países ricos. Elas servem como cerca de jardim e pomares (especialmente desejada por sua propriedade inseticida), como coberta para árvores de fruta, como bola e rede de gol de futebol, corda, como cerca de galinheiro, rede de pesca e até para fazer vestidos de noiva. Há domicílios que conseguem muitas redes – se cadastrando em vários centros de distribuição, ou exagerando o número de pessoas que moram ali – para essas finalidades, enquanto outros ficam sem.
Um uso em particular tem gerado problemas e tensões: a pesca. Com essas redes em mãos, milhões de cidadãos que antes passavam dificuldade para conseguir comida têm agora uma ferramenta para pescar por conta própria, seja no mar, em rios, pântanos ou lagos. O primeiro efeito disso é o aumento considerável na extensão da pesca, o que tem desagradado os pescadores tradicionais, que usam cestas ou redes tradicionais, que vivem da atividade e respeitam mais as condições e os ciclos de vida dos peixes de cujo comércio dependem.
Para piorar as coisas, o mosquiteiro tem buracos muito pequenos, ao contrário de redes de pesca convencional, o que faz com que ele não poupe filhotes de peixe, ovas e diversas espécies que não são comidas, trazendo assim um sério risco aos ecossistemas aquáticos. Para completar, o inseticida das redes, embora em baixas concentrações, é o bastante para infectar peixes em lagos e riachos, prejudicando ainda mais a ecologia local. O lago Tanganyika, segundo maior do mundo em volume de água, que é partilhado por Zâmbia, Burundi, Tanzânia e República Democrática do Congo, é central para a subsistência de milhões de pessoas. Está, contudo, sendo rapidamente despovoado de peixes pelas práticas nada sustentáveis da pesca com redes de mosquito. Pescadores têm que ir cada vez mais fundo para pescar a mesma quantidade de peixes.
Segundo algumas estimativas, 30% das redes não são usadas corretamente, sendo empregadas para outros fins, especialmente em meses quentes, quando dormir sob elas é ainda mais torturante. A percepção da malária como um fato quase onipresente, parte da vida de que é difícil escapar, ajuda no mau uso. Sem falar que, quando o que falta é comida, a prevenção de doenças fica em segundo plano. Melhor ter comida na mesa e correr o risco de pegar malária (que, embora potencialmente letal, sara sozinha), do que proteger-se dos mosquitos e passar fome. Também não ajudam percepções populares de que a própria rede pode transmitir doenças (como o ebola) ou de que cause impotência nos homens.
Como sempre, o mundo é um lugar complexo. Medidas de auxílio humanitário, pensadas com a melhor das intenções e que são realmente eficazes naquilo que se propõem, têm efeitos não-planejados que impactam sua eficácia e que criam novos problemas que ninguém previu. Ao desenvolverem e patrocinarem as redes, as melhores mentes da Europa e dos EUA não pensaram que elas seriam utilizadas de maneiras diferentes por quem as recebe; o que, do ponto de vista dos auxiliados, é bastante razoável.