A política externa do Catar é sustentável?

14/07/2012 03:00 Atualizado: 14/07/2012 03:00

Ex-combatentes talibãs depois de se juntarem às forças do governo do Afeganistão em 31 de março. O talibã anunciou este ano que planejava montar um escritório político no Catar. (Aref Karimi/AFP/Getty Images)O Catar, lar de apenas 225 mil nativos e 1,7 milhões de trabalhadores estrangeiros, emergiu como um ator regional influente nos últimos anos. Emir Shaikh Hamad bin Khalifa Al Thani tem governado o Catar desde 1995, quando substituiu seu pai num golpe palaciano sem derramamento de sangue e tem prosseguido com uma política externa ambiciosa para seu pequeno Estado.

Rico em recursos naturais, domínio da mídia Al-Jazeera e de rede de alianças estrangeiras cuidadosamente construída são características que têm permitido a Doha se projetar em todo o Oriente Médio.

A natureza da política externa do Catar é objeto de algum debate. Alguns analistas afirmam que a Catar conduz uma política externa não influenciada por nenhuma ideologia e que suas únicas preocupações se relacionam com os ganhos geopolíticos. Doha, dizem eles, carece de uma visão regional e não é guiada por qualquer lealdade ou princípios. No entanto, outros postulam que a política externa do Catar é guiada por uma forma de ideologia islamista sunita e ativamente procura capacitar seus seguidores em todo o mundo muçulmano.

A verdade pode estar em algum lugar no meio disso. Mas, como o Catar continua seu ato de equilíbrio delicado, é cada vez mais evidente que os interesses de Doha não estarão sempre alinhados com os de Washington.

Alianças multidimensionais

Com uma economia impulsionada por exportações de petróleo e gás, o Catar tem um interesse nacional vital na manutenção da estabilidade no Golfo Pérsico, já que as exportações devem viajar através do Estreito de Ormuz para chegar aos principais parceiros importadores do Catar, o Japão, a Coreia do Sul, a Índia e Cingapura. Devido à pequena população do Catar e pequena força militar (a segunda menor no Oriente Médio), Doha tem contado em grande medida com a cooperação externa e o apoio para salvaguardar os interesses de segurança.

Desde a primeira Guerra do Golfo, o Catar tem sido um aliado militar dos Estados Unidos e atualmente abriga a sede do Comando Central dos EUA. Mas Doha também mantém laços estreitos com Teerã. Em março de 2010, Catar e Irã assinaram um acordo de segurança “para combater o terrorismo e promover a cooperação em segurança” e o Qatar foi o único membro do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) a votar contra a resolução 1696 do Conselho, que condenou o Irã por suas atividades nucleares em 2006.

Embora as relações entre o Catar e seu único vizinho limítrofe, a Arábia Saudita, tenham sido conturbadas por décadas, as iniciativas diplomáticas em 2007 e 2008 levaram a uma aproximação nas relações catari-sauditas. E antes da repressão de Bashar al-Assad na Síria, o Catar e a Síria tinham profundos vínculos políticos e econômicos. Embora o Catar e Israel nunca tenham tido relações diplomáticas oficiais, Israel tinha um centro de comércio em Doha até a Operação Chumbo Fundido em 2008-2009. Além disso, laços comerciais com Israel não impediram o Catar de desenvolver relações amigáveis com o Hamas e várias facções libanesas, incluindo o Hezbollah.

O ato de equilíbrio delicado do Catar e a ampla riqueza de recursos permitiram a seus líderes representar seu país como um corretor de paz legítima e imparcial com os recursos para financiar negociações de paz abrangentes. Em 2006, os líderes do Catar começaram a mediar conversações entre facções palestinas em Gaza após as eleições legislativas de 2006. O maior sucesso diplomático do Catar foi seu patrocínio das negociações em Doha, que terminaram a violência entre o Hezbollah e outras facções libanesas logo após a violência sectária explodir em todo o Líbano no início de 2008.

Ainda assim, analistas, incluindo Barak Barfi e Blake Houshell, sugerem que a política externa do Catar pode ser insustentável devido aos limites inerentes ao tamanho do Catar e às realidades políticas da região onde ele existe. Os laços de Doha com Teerã e outros têm sido um espinho nas relações com a Arábia Saudita e outros Estados do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), bem como com os Estados Unidos em 2009, por exemplo, o senador John Kerry declarou que “o Catar […] não pode continuar a ser um aliado norte-americano na segunda-feira e enviar dinheiro ao Hamas na terça-feira.”

Da mesma forma, o apoio do Catar à oposição síria e os esforços para isolar e enfraquecer o regime de Assad trouxeram tensão a sua relação com o Irã. Certos desenvolvimentos, tais como um ataque dos EUA a instalações nucleares iranianas ou o transbordamento da violência na Síria para outros estados, podem obrigar o Catar a escolher um lado.

Fonte de notícia independente ou arma do Catar?

A mão pesada dos governos árabes tem tradicionalmente se manifestado na censura da mídia, assim como a falta de independência da mídia tem dado a muitos nas ruas árabes grande cinismo sobre as fontes de notícia disponíveis. No entanto, desde que o governo do Catar lançou a Al-Jazeera em 1996, o canal por satélite tem servido como fonte de notícia confiável para milhões de árabes.

Embora a cobertura desfavorável sobre Doha mesma seja rara, a cobertura crítica da Al-Jazeera no exterior muitas vezes abalou regimes autoritários em seus núcleos. Como o professor Ahmed E. Souaiaia da Universidade de Iowa observa, ao longo dos anos recentes, “[os governos da] Tunísia, Egito, Marrocos, Líbia e Síria fecharam escritórios da Al-Jazeera em reação ao que consideram notícias ‘caluniosas’, ‘insultuosas’ e ‘venenosas’. A hostilidade dos regimes árabes em relação à Al-Jazeera só aumentou sua popularidade entre as massas árabes.”

No entanto, alguns se apressaram em acusar a Al-Jazeera de agir em nome dos interesses do Catar e não como uma estrita agência jornalística. Lynch abserva, por exemplo, que autoridades egípcias criticaram fervorosamente a “vingança do Catar contra Mubarak”. Ainda mais controverso, ele acrescenta, “há alguma razão para acreditar que o sucesso da Al-Jazeera no Egito chegou aos cabeças da administração e que o família real do Catar começou a tratá-la mais como uma arma útil na política regional do que como o símbolo de prestígio independente que há muito valorizava.”

Ao longo da Primavera Árabe, acusações foram feitas contra a Al-Jazeera, que teria empregado um duplo padrão para cobrir as revoltas na Síria e na Líbia, em comparação com aquelas no vizinho Bahrain, um aliado do Qatar.

Espalhar a democracia ou o imperialismo do Qatar?

Quando os levantes anti-Kadhafi começaram na Líbia, o Catar foi o primeiro Estado árabe a apoiar uma intervenção militar estrangeira e conceder legitimidade política aos rebeldes. O apoio do Catar forneceu à OTAN cobertura política enquanto começavam sua campanha militar contra Kadhafi em março de 2011. Doha também enviou seis caças Mirage para a luta e treinou rebeldes líbios no Qatar.

Uma situação similar parece estar ocorrendo na Síria. Quando a CBS News perguntou ao emir do Catar se ele apoiaria uma intervenção árabe da Síria, ele respondeu, “Acho que para tal situação, para parar a matança, algumas tropas devem ir para parar a matança.” O Catar desempenhou um papel de liderança na decisão da Liga Árabe de suspender a Síria em novembro de 2011.

Os motivos reais por trás de seu apoio à intervenção militar na Líbia e na Síria são complicados e observadores discordam sobre agenda real do Catar. Alguns confiam que o regime tenha uma agenda humanitária, enquanto outros percebem uma campanha para divulgar o wahabismo. Na verdade, o apoio que o Catar tem dado aos islamistas sunitas na Líbia, Tunísia e Síria durante e após suas lutas contra os regimes seculares, sugere que o Qatar possa estar tentando formar uma aliança ideológica com novas forças no novo Oriente Médio. Mas se o apoio do Catar a essas facções é impulsionado por uma fidelidade à ideologia islamista ou é meramente oportunista não está claro.

Desafios de Doha

Vários fatores desafiarão a sustentabilidade da política externa de Doha.

A história do Catar de imparcialidade e neutralidade no tumulto na região tem avançado sua imagem como um corretor de paz legítima. No entanto, Doha, inevitavelmente, criará inimigos se continuar a tomar partido em guerras civis estrangeiras. Na verdade, durante os últimos meses, relatórios vieram à tona de que o governo da Síria travou uma guerra cibernética contra o Catar, em retaliação a seu apoio aos rebeldes sírios.

Além disso, as tensões geopolíticas na região podem atingir um ponto em que Catar seja forçado a se alinhar com um lado ou outro. Até agora, o Qatar, com sucesso, equilibrou os interesses dos Estados maiores em oposição sem fazer inimigos. No entanto, este ato de equilíbrio delicado pode tornar-se quase impossível em certas circunstâncias, como num confronto militar no Golfo Pérsico entre os Estados Unidos e o Irã.

Finalmente, o compromisso retórico do Catar de espalhar a “democracia”, “liberdade” e “dignidade” no mundo árabe é muitas vezes encarado com ceticismo e por boas razões. O Catar é governado por um regime emirado não eleito. A posição pertencente ao chefe de Estado e do governo do Qatar é hereditária. Grupos de direitos humanos de autoridade, como a Anistia Internacional, o Human Rights Watch e a Freedom House, têm documentado altos níveis de censura, uma mídia independente anêmica e um sistema jurídico discriminatório.

No entanto, muitos argumentam que o emir do Qatar está tentando remodelar a imagem de seu país como mais democrático e moderno.

Entretanto, a disposição do Catar de desenvolver relações cordiais com os Estados e atores que buscam de forma proativa minar a hegemonia dos EUA, assim como facções islâmicas na África do Norte, sugere que os interesses do Catar nem sempre se alinharão com os de Washington.

Porém, não há dois países no mundo que possuam os mesmos interesses em todos os momentos. E, se a hegemonia dos EUA na região diminuir ainda mais, é natural que outros Estados como o Catar tentem preencher o vazio. Enquanto isso, Doha pode sentir menos pressão em se alinhar com a agenda de uma superpotência em declínio quando não servir seus próprios interesses nacionais.

Giorgio Cafiero é um colaborador da ‘Foreign Policy in Focus’. Cortesia da Foreign Policy in Focus (fpif.org). Esta é uma versão resumida do artigo original.