Em primeiro de setembro, entrou em vigor na China a nova legislação sobre “locais de atividade religiosa” que intensifica o controle do Partido Comunista sobre as crenças ainda reconhecidas em algum grau pelo regime chinês.
O Epoch Times Brasil foi a única mídia a disponibilizar ao público brasileiro uma tradução do documento ao português na íntegra.
O Partido Comunista Chinês (PCCh) tem intensificado medidas contra vários grupos de fé na China. Entre os alvejados estão a disciplina espiritual pacífica Falun Gong, também chamada Falun Dafa, cristãos de diferentes denominações e muçulmanos da etnia uigur. Organizações de direitos humanos, em pareceres referenciados por organismos internacionais apontam que há mais de 1 milhão de uigures em campos de reeducação — já citados como campos de concentração.
Agora, a lei explica como os chamados “locais de atividade religiosa”, incluindo igrejas e mosteiros serão regulamentados.
Em 5 pontos, o que as novas “Medidas Administrativas para Locais de Atividade Religiosa” significam?
1) A religião na República Popular da China é nominal. A única fé permitida é a fé no Estado — no Partido Comunista
No artigo 3º, nas disposições iniciais do documento, se lê:
Artigo 3.º Os locais de atividade religiosa devem defender a liderança do PCCh e o sistema socialista, implementar cabalmente a ideologia de Xi Jinping do socialismo com características chinesas para a nova era, respeitar a Constituição, leis, regras e regulamentos e disposições relevantes sobre a gestão de assuntos religiosos, praticar valores socialistas fundamentais, aderir à direção de sinicização das religiões da China, aderir ao princípio da independência, autonomia e autossuficiência, e salvaguardar a unidade do país, a unidade nacional, a harmonia religiosa e a estabilidade social.
“Defender a liderança do PCCh”, os “valores socialistas fundamentais”, o “socialismo com características chinesas”, a “sinicização” e a sequência do artigo esclarecem: a religião, na China do Partido, é apenas nominal.
O PCCh, cuja liderança os mosteiros e igrejas deverão “defender”, proíbe seus membros de professar qualquer fé. Ele impõe não um Estado laico, mas ateísta.
Os sistemas de valores das fés tradicionais da China — em especial Budismo e Taoísmo — pregam o oposto das novas medidas. Nas palavras de Lao Tsé, no Tao Te Ching, poema 29:
“Tentando controlar o mundo? Vejo que não conseguirás. O mundo é um vaso espiritual e não pode ser controlado. Manipule-o, e o arruinará. Tome-o e o perderá.”
Em contraste, sob a nova legislação:
Artigo 27.º Os membros da entidade gestora dos locais de atividade religiosa devem reunir as seguintes condições básicas:
(i) Amar a pátria e apoiar a liderança do PCCh e o sistema socialista;
O taoísta deverá tentar “controlar o mundo”, “manipulá-lo” e “tomá-lo”, amando “a pátria” e “apoiando” a liderança do regime. Ele deverá negar os ensinamentos da sua tradição espiritual.
Este exemplo só começa a descrever a realidade em vigor. Para cristãos na China, vem a implicação lógica: igrejas apoiarão trocas da imagem de Jesus Cristo pela de Xi Jinping e aceitarão bíblias reescritas pelo PCCh — ou não funcionarão legalmente.
O que se pode louvar nos “locais de atividade religiosa” é o Partido Comunista Chinês. Eventualmente, não deve ser problema queimar incensos ou realizar uma missa. Claro, registrando com as autoridades competentes que o sermão esteja de acordo com o “socialismo com características chinesas para a nova era”, como a legislação pontua adiante:
Artigo 39.º As atividades religiosas serão realizadas em locais de atividade religiosa em conformidade com as leis, regras e regulamentos nacionais, e o conteúdo dos sermões e ensinamentos será adequado às características das condições nacionais da China e às características dos tempos, e deverão ser integrados com a excelente cultura tradicional chinesa e refletir a valores socialistas fundamentais.
Ainda além, a “liturgia” do Partido nos templos parece agora tão importante quanto os ensinamentos do Buda ou de Jesus Cristo. Os fiéis não só deverão “apoiar a liderança do PCCh e o sistema socialista”, adequando sua fé aos “valores socialistas fundamentais” e os inserindo em “sermões e ensinamentos”. Terão que estudar as “diretrizes” comunistas.
Artigo 36.º Os locais de atividade religiosa estabelecerão um sistema de estudo e organizarão regularmente o pessoal do local para estudar as diretrizes e políticas do PCCh, leis e regulamentos nacionais, excelente cultura tradicional chinesa, conhecimento religioso e assim por diante.
Valeria questionar se o seguinte slogan da Revolução Cultural entra na lista de leitura:
“Batalhe contra os Céu, brigue contra a Terra, lute contra os seres humanos – nisto reside infinita alegria”.
2) Para o PCCh, a China não é verdadeiramente chinesa — mas o comunismo, importado da Europa, é
No ponto acima, mais um paradoxo vem à tona. O texto da lei fala em “excelente cultura tradicional chinesa” — que, como resta evidente nas palavras de Lao Tsé acima, é o contrário das imposições do PCCh.
O Partido proíbe seus membros de crer no divino; a cultura tradicional chinesa se constrói sobre a reverência aos Céus e ao Tao — o Caminho. O Partido nega os ensinamentos familiares e educa os jovens pela doutrina partidária; a cultura tradicional chinesa prega a piedade filial e a coesão familiar confucionista. O dilema depois fica esclarecido: para o Partido Comunista Chinês, ser “chinês” significa aderir “ao socialismo com características chinesas” e a “excelente cultura tradicional chinesa” tem mais a ver com Mao Tsé-Tung do que com Lao Tsé.
Artigo 30.º A entidade gestora do local de atividade religiosa exerce as seguintes funções:
(i) Unir e educar os cidadãos religiosos para amar a pátria, apoiar a liderança do PCCh, praticar os valores fundamentais socialistas, aderir à direção do sinicização das religiões da China e respeitar a Constituição, as leis, os regulamentos, as regras e os regulamentos e as disposições relevantes da gestão dos assuntos religiosos;
A prova fica no fato de que os repetidos pedidos por “sinicização” — para tornar algo chinês — não se dirigem só às religiões ocidentais ou ao budismo, já incorporado há dois mil anos à cultura do país. Se dirigem às fés que fundaram os 5000 anos de civilização da China.
Voltando menos de dois meses antes de as novas medidas entrarem em vigor, a estatal “Associação Taoísta da China” organizou junto a uma série de grupos o “1º Fórum Sobre Teoria e Prática da Sinicização do Taoísmo” em 25 e 26 de julho.
A dúvida é: como o taoísmo poderia ser mais chinês?
Na mitologia do país, o “ancestral comum” de todo chinês é o Imperador Amarelo, Xuanyuan Huangdi, que era um cultivador taoísta. Ele abdicou do trono para perseguir perfeição espiritual. Sua lenda é considerada um dos mais antigos registros históricos do taoísmo, datando de por volta 2700 anos antes de Cristo. Mais de 20 séculos depois, a outra figura mais conhecida do taoísmo, o místico Lao Tsé, autor do Tao Te Ching, nasceu e divulgou seus ensinamentos no seio da civilização chinesa, no vale do Rio Amarelo, e em mandarim.
Em artigo na revista Bitter Winter, o jornalista He Yuyan pontuou: “o fato que é que a “sinicização da religião” não significa adaptar diferentes fés à cultura e às tradições chinesas, o que seria absurdo para o taoísmo, já que ele eminentemente representa tais tradições e culturas. Significa adaptar as religiões à ideologia do PCCh e moldá-las para se tornarem cada vez mais porta-vozes para a propaganda do Partido”.
Não deixa de restar a ironia. O taoísmo, que funda a nacionalidade chinesa, não é chinês para o Partido Comunista. Chinês é o comunismo, desenvolvido por um alemão na Inglaterra, prototipado na França e implementado na Rússia — de onde foi exportado para a China e arquitetado ali por um russo e um holandês.
3) Reprimir a fé é reprimir a educação e a família
Em comunidades religiosas leigas ou de crenças que não preguem o celibato do clero é comum que famílias organizem a gestão de templos. Agora, isto é ilegal com a nova legislação chinesa.
Artigo 27.º Os membros da entidade gestora dos locais de atividade religiosa devem reunir as seguintes condições básicas: […] Membros de uma organização gestora que estejam relacionados entre si como marido e mulher, parentes consanguíneos em linha direta, parentes consanguíneos dentro de três gerações, parentes próximos por casamento ou adoção, serão recusados.
Marido e esposa, pais e filhos, primos e primas não podem formar entidades gestoras para passar pela burocracia e, eventualmente abrir um “local de atividade religiosa”. É uma “condição básica” para o regime.
Crenças do Ocidente e do Oriente, incluindo a filosofia confucionista, o judaísmo e o cristianismo, não só transmitem a união no matrimônio como algo sagrado, mas como uma forma de organização social legada ao homem por Deus.
As novas medidas atacam a fé no divino e a tradição nacional. A consequência lógica é que também desmancham a organização das famílias e a transmissão hereditária dos costumes. Não bastava ser lógico. O texto também insere burocracia para isso.
E a educação das comunidades não escapa.
Qualquer mosteiro ou igreja precisa de permissão estatal para alterar o conteúdo e os professores de sua educação religiosa.
Artigo 44.º Os mosteiros e igrejas realizarão educação e formação religiosa para formar pessoal religioso e estudar durante mais de três meses, de acordo com o Regulamento sobre Assuntos Religiosos e outras disposições relevantes, e não alterarão os instrutores, o conteúdo do ensino, o escopo das matrículas, as horas formativas, etc. sem autorização.
4) Para aquele que tentar se adequar: a humilhação da burocracia
É famosa a obsessão por burocracia dos regimes comunistas do século passado. O Partido Comunista Chinês honrou a herança.
Para começar o processo de abertura de um “local de atividade religiosa”, é preciso entrar com uma proposta para montar uma “organização preparatória”. Cada integrante da organização entrega documentos e papelada. Daí, se envia um formulário. É preciso descrever orçamento e origem dos recursos e o estilo arquitetônico da igreja ou mosteiro — com desenhos.
O formulário chega no nível de condado (que fica acima do municipal, mas abaixo do estadual, ou provincial, na China). Depois:
Artigo 12.º O departamento de assuntos religiosos na alçada do condado deve, no prazo de trinta dias úteis a contar da data de recebimento do pedido, emitir parecer sobre o exame e aprovação e comunicá-lo ao departamento de assuntos religiosos a nível municipal do distrito.
O assunto vai pro município. De lá são mais 30 dias para deferência. Dali segue para o provincial. Se for uma igreja ou mosteiro, é preciso mais uma deferência. Mais 30 dias. Os departamentos do município e da província precisam visitar o local pretendido.
Se der tudo certo, a tal “organização preparatória” tem um período menor que 5 anos para estabelecer o local e deve comunicar “prontamente” sua situação sempre ao “departamento de assuntos religiosos” pertinente. O “departamento” vai fiscalizar e supervisionar os preparativos.
“Burocracia nem começa a descrever”. Esse é o início do trâmite. Mais na frente vem uma outra organização formada burocraticamente nos termos da lei: a “organização gestora”. A papelada inclui uma “descrição das circunstâncias” e outros seis calhamaços de documentos.
Não surpreende pensar que, 16 anos atrás, em 1º de setembro de 2007, passavam a vigorar as normas regulamentando a burocracia para a reencarnação dos budas vivos do budismo tibetano.
Nem surpreende que a nova lei peça “civilidade” na queima do incenso.
Artigo 45.º Os locais de atividade religiosa devem regulamentar a montagem e disposição de exibições, orientar cidadãos religiosos a queimar incenso de forma civilizada e realizar atividades “libertação de vidas” nos termos da lei.
5) “Etc.”
Regimes totalitários tendem a ter leis vagas. Dão aparência de normalidade pro observador desatento, mas permitem ao Estado usá-las arbitrariamente. O PCCh pede das igrejas e mosteiros a mesma conduta.
Artigo 32.º Os locais de atividade religiosa devem estabelecer e melhorar o sistema de gestão de pessoal, regular as atividades religiosas do pessoal, atividades sociais, intercâmbios externos, etc., para fortalecer a gestão do pessoal do local, e para criticar e educar infratores, que devem ser corrigidos e receber punição apropriada.
Vale questionar o que o “etc.” implica. Tampouco é claro o que “regular atividades sociais” quer dizer. Especialmente dado que, algumas páginas adiante, se descobre quem supervisiona o “sistema de gestão” e os “regulamentos”: o PCCh.
Artigo 66.º O departamento de assuntos religiosos supervisiona e fiscaliza os locais de atividade religiosa quanto ao cumprimento das leis, regulamentos e regras, ao estabelecimento e implementação de um sistema de gestão do local, às alterações nos itens de registo, ao tratamento da manutenção de registos formalidades, bem como atividades religiosas e atividades relacionadas com o exterior.
Não se resume a isso, mas “a regras e regulamentos”, “fiscalização dos membros da organização gestora”, “clero religioso”, “corpo docente”, “gestão financeira” — e ao que mais? “Etc.”.
Artigo 67.º Os grupos religiosos nacionais devem, de acordo com a Constituição, as leis, regulamentos, regras e políticas, bem como as necessidades práticas do trabalho, formular no âmbito da sua atividade as regras e regulamentos dos locais de culto da sua religião, as regras de fiscalização dos membros da organização gestora do local e seus respectivos mandatos, do clero religioso, do corpo docente principal, das atividades religiosas, da gestão financeira e patrimonial, etc., mediante disposições específicas.
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